Diz o povo que “cada macaco em seu galho” e “cada doido com sua mania”.

Já me perguntaram quais as obras clássicas que me influenciaram. Dei minha relação e disse que eram emprestadas, lidas nas bibliotecas públicas e escolares. Na minha casa, nem a bíblia, que era muito cara para as condições financeiras de meus genitores. Lia de tudo que aparecia em minhas mãos e olhos, até bula de remédio e almanaques distribuídos nas farmácias do meu Alecrim. Cresci vendo e, de certo modo, invejando duas bibliotecas que ficavam próximas à minha morada. A do escritor Rômulo Wanderlei e a do jornalista Leonardo Bezerra.
O amor aos livros é até indescritível. Tenho um amigo que ao pegar um livro, principalmente se o mesmo for novo, este vai logo o cheirando. Encontro livros em sebos, sem nem mesmo o nome do seu antigo dono. Minha filha, que é professora e terminou o curso de Letras, não admite os meus rabiscos nas partes laterais ou embaixo das páginas de meus livros lidos.
Quando cheguei a primeira vez na casa de Gilberto Freyre, em Recife, logo me mostraram uma surrada cadeira de couro, em que o mesmo gostava de sentar para suas leituras. Nosso Câmara Cascudo gostava de ficar em uma rede para ler seus livros. Uns gostam de ler em seus escritórios e mesas nas suas bibliotecas. No meu caso, a rede me dá sono desde criança. prefiro sentar-me em cadeiras antigas e confortáveis para ler, com a caneta sempre à mão para ir anotando minhas observações, grifando datas, nomes e frases mais interessantes. Segundo a minha filha, um verdadeiro e imperdoável crime é riscar os livros lidos. Para amigos e amigas sebistas, até perdem o seu valor monetário para compra e venda.
Tenho a mania de comprar os mais riscados e, principalmente, os autografados por autores e autoras, com dedicatórias gentis aos seus leitores. Os escritores Mortimer Adler e Charles Doren escreveram um livro com o título “Como ler um livro”, no qual nos aconselha e ensina a arte de ler. Na referida obra, os autores se referem a quase uma centena de clássicos literários. Da Bíblia ao Alcorão. Rousseau, Marx, Boccacio, Homero, Santo Agostinho e Cícero. Infelizmente, nenhum brasileiro é citado. Nem o nosso Machado de Assis e Euclides da Cunha. Todos eles, já velhos habitantes aqui do meu espaço. Os livros não brigam entre si e um dia desses um visitante até deixou seu maldoso comentário do visto: “É uma misturada dos diabos, a sua biblioteca. Tem de quase tudo aqui”. Desconfio daqueles que só leem um lado da história. Um pastor evangélico, outro dia, ao ver minha biblioteca se espantou e logo saiu quando viu muita coisa sobre religiosidade afro, folclore misturado com Lutero e Alan Kardec. Fora os muitos autores ateus.
Tenho muita calma e paciência em minhas leituras, além de riscar, ao meu modo, os livros lidos. Por isso, não peço emprestado livro a ninguém. E por falar em empréstimos, raramente os recebi de volta a quem os emprestei. Uma vez encontrei um deles, de minha biblioteca, em um sebo da cidade de Mossoró. E o trouxe de volta para casa, como aquele filho pródigo que fora sequestrado por um amigo ingrato e mau caráter. Deixo o seguinte aviso aos visitantes, mas tem os insistentes: “O último que me levou emprestado, ainda não voltou para devolver”.
Vou dar apenas dois exemplos de escritores aqui do RN que riscavam seus livros com suas observações mais variadas. Esmeraldo Siqueira, que eu visitei inúmeras vezes em sua casa na rua Jundiaí, levado pelo seu filho e amigo “Mano Siqueira”. Só lia com uma caneta à mão para ir fazendo anotações e até discordando do autor. Algumas coisas impublicáveis quando este não gostava dos poemas ou opiniões dos autores. E quando este partiu em 1987, o seu citado filho me deu de presente alguns livros da seleta biblioteca do seu velho pai. Muita literatura francesa, mas eu trouxe uma dezena de obras potiguares. Como disse, todos riscados e com severas brigas entre o leitor exigente e polêmico com os pobres autores do RN. Esmeraldo pouco falava enquanto tomava vinho seco tinto chileno, acompanhando o filho e o jovem cabido visitante…
Fui também muito amigo do professor e escritor José Melquíades. Muitas conversas sobre tudo do mundo literário, fossem estas no bar de Lourival, na sua casa em Santos Reis ou nas solenidades no nosso Instituto Histórico e Geográfico do RN. Regadas a cervejas e uísques. Quando o mestre partiu, em 2001, sua viúva chamou um pequeno grupo de seus amigos para doar seus livros que faziam parte de sua grande biblioteca. Fui um dos escolhidos e de lá trouxe dezenas de livros sobre história e folclore, inclusive os da autoria de seu velho amigo, Câmara Cascudo, com dedicatórias amigas e humorísticas. Foi a primeira viúva que eu vi repassar a biblioteca de seu marido falecido para outros amigos cuidarem com zelo e carinho os livros. Gesto nobre de amizade repassada aos filhos e esposas! Não vou descrever o que muitas viúvas fizeram das bibliotecas de seus maridos escritores quando o caixão dobrou a esquina. Cala-te boca!
Hoje, jogo a culpa dos meus livros totalmente riscados aos dois saudosos mestres e amigos referidos. Uma certa homenagem aos dois. Desconfio de biblioteca muito arrumada e de pesquisadores sem anotações nos livros lidos. Minha antiga mestra escolar do Curso de Pedagogia, perdeu tempo coitada, em me aconselhar a fazer uma fichinha para cada livro lido: “Nunca rasure seus livros!’.  Perdão professora, mas preferi anotar nos espaços em branco das obras lidas. São amizades e habitantes de minha casa, como diria o escritor Américo de Oliveira Costa. Os herdeiros gostam de dinheiro, não de livros. 
Vou encerrar esta prosa meia chata, lembrando aquele antiguíssimo dito popular que eu ouvi ainda criança na feira do Alecrim: “Se conselho fosse bom, ninguém dava, vendia!”. E antes que me esqueça, eu digo que nunca li livros de maneira virtual. Na internet só artigos, nada de textos longos. Sou do tempo de impressos em papel. Gráficas, livrarias e sebos. Quem me conhece, sabe que não tenho tempo. E como vou riscá-los na tela de meu notebook?
Morada São Saruê, Nísia Floresta/RN.
 

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