Os ‘doidos’ do meu Alecrim

Praça Gentil Ferreira, Bairro do Alecrim. Foto: Acervo/A República – década de 1980

A Igreja Católica não divulga as ‘loucuras’ de São Francisco de Assis (1181-1226). As santas e boas loucuras do homem que conversava com as plantas e animais e, diga-se, até teria andado livremente nu no campo. Um santo de alma quixotesca. Dizem os sábios que só os ‘loucos’ e os santos são realmente desapegados de riquezas materiais, a mesma matéria que inferniza os considerados lúcidos. Já contei em diversas crônicas e artigos as histórias dos ‘doidos’ que encontrei em minhas andanças. Aonde vou, eles e elas achegam-se a mim, e faço questão de respeitá-los e tratá-los com carinho e dignidade, sempre. De Mossoró a Macau…

O saudoso mestre Veríssimo de Melo (1921-1996), ao ouvir meus relatos sobre eles, deu-me a acertada explicação folclorística em meio à sua característica e fraterna gargalhada: Amigo Gutenberg, não é todo mundo que tem azougue para chamar os doidos! Ora, é comum a expressão popular: Se faz de doido pra passar melhor! O também saudoso e amigo compositor, o cantor carnavalesco Dosinho (1927-2014). autor de uma canção famosa – ‘Doido também apanha’, lembra-nos esse trecho das regras severas do passado – Eu já sei que sua loucura é manha e não se esqueça que doido também apanha…

O escritor e pesquisador Paulo Rónai (1907-1992), publicou um volumoso dicionário de Citações (1985). Dessa obra pesquei algumas pérolas.

Uma vez por ano é permitido bancar o louco – Sêneca, o filósofo;

Louco é quem confia na mansidão do lobo, na saúde do cavalo, no amor de um rapaz e nas juras de uma prostituta – Shakespeare, o dramaturgo;

Quem vive sem loucura não é tão sábio como pensa – La Rochefoucauld, o escritor e pensador.

Meu pai, Seu Geraldo Costa (1915-1994), não dava corda para os doidos. Já minha saudosa mãe, Dona Maria Estela (1925-1998), passava a mão na cabeça desse povo e os dava de comer e beber. Ela me dizia ser gente de juízo fraco...

O grande Ariano Suassuna (1927-2014) amava os doidos, a grande fonte de sua literatura profundamente popular. E sigo o saudoso mestre e gênio paraibano, antes mesmo de se falar em influenciadores. No sertão, ainda chamam os doidos de ‘amalucados’, ‘abilolados’, ‘aluados’, entre outras denominações populares…

Agora, para aplacar finalmente a curiosidade dos alecrinenses do meu tempo, aqueles e aquelas que moraram no bairro mais populoso da cidade do Natal em meados dos anos 60/70, como eu, vou relacionar alguns tipos populares de rua que eram considerados ‘doidos’ e ‘doidas’ e que já foram mencionados em meu livro, esgotado, – Natal, Personagens Populares (1999), prêmio literário de pesquisas da Prefeitura da Cidade do Natal.

O ‘doido’ mais famoso do meu Alecrim era o ‘Lambretinha’, que corria pelas ruas ainda em areia, imitando as motocicletas chamadas ‘lambretas’. A poeira sacudia entre nós em suas carreiras olímpicas. Comia restos de lixos e defecava em qualquer lugar em sua tranquilíssima humanidade. Eu tinha medo, confesso, mesmo sem ele nunca ter feito gestos violentos. Era só deixá-lo quieto, na dele, com suas mungangas. Papai dizia que Lambretinha era o único e legitimo doido do Alecrim, e dava o seu diagnostico médico: Rasga dinheiro e come sujeiras! Nunca encontrei uma fotografia do mesmo, mas seu biótipo permanece em minha memória, mais viva do que nunca. Baixo, branco, forte, barbudo, roupas sujas e rasgadas, descalço e sem articulação para conversas. Quando morreu atropelado, nos anos 70, o sofrido Lambretinha recebeu a caridade cristã do amigo sanfoneiro Roberto do Acordeom, com direito a caixão fúnebre e enterro digno, o que muitos não tiveram.

Outro era o apelidado ‘Relâmpago’, que trabalhava nos dias de lucidez como cabeceiro nos armazéns do bairro. Transportava pesadas mercadorias em sua cabeça, coisa que fugia da capacidade humana de muita gente. Diziam ser um ‘doido de lua’. Quando estava em fase de loucura, ficava irreconhecível. Sujo, roupas rasgadas, descalço, barbudo, correndo pelas ruas, brigando com Deus e o mundo. Era branco, magro, cabelos pretos e, além de tudo, tomava cachaça na boca das garrafas. Morreu nos anos 80, com velório na Avenida 8, caixão comprado pela caridade dos antigos moradores do bairro. Um dia, sem querer, consegui uma foto dele bem jovem, nos anos 60, parecendo em épocas de lucidez. Quando li o romance ‘Cabeleira’, do cearense Franklin Távora (1842-1888), me lembrei das loucas valentias de Relâmpago e o medo das crianças e do bom povo alecrinense: Fechem as portas, que Relâmpago tá correndo nas ruas, vilas e becos…

Muitos nomes eu teria para ilustrar esse texto memorialístico: ‘Corisco’, diziam ser um ‘doido sabido’. Chamava-se José Bernardo. Quando era apelidado ou desacatado, soltava os maiores palavrões do mundo, onde quer que fosse, nas ruas ou nas procissões da Igreja de São Pedro. Era um tipo baixo, branco, forte, meio corcunda, cabelos pretos, aluizista roxo, católico fervoroso e fidedigno devoto dos santos padinho Cícero e Frei Damião. Ainda não consegui uma foto do saudoso Corisco.

‘Cuíca’ era outro. Chamava-se José, e, ao receber um ‘não’ para seus pedidos de esmolas, batia com sua cabeça nas paredes até sangrar. Não era violento, andava Natal inteira a pé, além das cidades de fora de sua capital, como a distante Santana do Matos. Ainda não consegui uma foto sua…

Na feira do meu bairro também apareciam os ditos ‘doidos’ e ‘doidas’ que, apelidados, ficavam furiosos. Quem pagava os patos eram sempre as nossas pobres mães. ‘Badalo’ era um homem calmo, pintor de casas que ao ser apelidado virava o cão chupando manga.

A mulher mais famosa era a apelidada ‘Maria Saí da Lata’, que era deficiente visual e procurava a todo custo atacar os meninos traquinos com seu cajado em meio aos palavrões.

‘Caju’ era um tipo magro, preto, cabelos grisalhos, olhos estrábicos e cabeça pequena em formato de uma castanha, daí seu apelido. Vivia calmo e feliz ‘dentro’ do hospital Policlínica e Igreja do Monsenhor Eymard’le (1917-2006). Apelidado de ‘caju’, soltava seus palavrões em plenas missas. Mas Deus o perdoava. O amigo pesquisador e professor Carlos Andrade presenteou-me com uma rara fotografia do velho ‘Caju’. Ele fez parte de minhas lembranças e travessuras nos anos 60. Caju, cadê a castanha? Tá no rabo de sua mãe, fela da puta… E vivam os loucos, os quixotescos!

Bem, como tenho que dar um fim nessa longa conversa, vou dizer aos alecrinenses que muito mais vocês verão no meu futuro livro de titulo – ‘Alecrim de A a Z’, que há dois anos está pronto e loucamente esperando por um patrocinador para chegar aos leitores. Parodiando aquele velho dito, dizem que – de escritor e louco, todo mundo tem um pouco!

Morada São Saruê, Nísia Floresta/RN