Memória e resistência do povo indígena no RN

por JUSSARA GALHARDO // Antropóloga
Parente Tapuia Paiacu de Apodi. Fotografia: Taian Marques / Coletivo Foque

O campo peculiar de relações que se estabeleceu entre museus etnográficos, antropólogos e povos indígenas ao longo do século XX e nos dias atuais no Brasil, sobretudo no RN, nos leva a fazer algumas reflexões importantes.

Inicialmente, devemos nos lembrar que no século passado os museus se pautavam no colecionismo, em que os artefatos eram adquiridos e salvaguardados nessas instituições, exibidos e apreciados de forma descontextualizada como elementos amorfos que representavam simbolicamente a produção material de grupos étnicos que estariam em risco de extinção, de desaparecimento.
No Rio Grande do Norte, mais especificamente no Museu Câmara Cascudo-MCC/UFRN, até início deste século esse pensamento foi sedimentado por uma cúpula política de intelectuais que afirmava sobre o “desaparecimento étnico” dos povos indígenas Potiguara e Tapuia como uma verdade incontestável. E tanto na historiografia oficial como nos números dos censos os indígenas por mais de um século foram invisibilizados, considerados páginas viradas.
Nesse campo de relações os indígenas estavam marginalizados, mal representados em seus referenciais simbólicos e mal compreendidos em seus contextos complexos e diversos. A paisagem museográfica do MCC/UFRN. até início dos anos de 2000, se compunha por artefatos pertencentes aos povos indígenas do Norte do país, num reforço consistente da ideia de apagamento dos indígenas no estado potiguar.
Mas, logo essa postura tenaz se diluiu, dando lugar a novos conhecimentos e estudos que exigiam uma maior aproximação com a realidade e contemporaneidade desses grupos sociais, detentores de uma memória social, história oral e de saberes próprios que passaram a ser recuperados e valorizados como patrimônio da cultura viva, dinâmica e pulsante.
O Grupo Paraupaba de Estudos da Questão Indígena no Rio Grande do Norte – criado no ano de 2005 com sede no MCC/UFRN e composto por pesquisadores, instituições parceiras e membros da sociedade civil – deu um significativo avanço nesse sentido, em busca de entender sobre os indígenas no RN. Teve papel importante no engajamento político junto a esses atores sociais que buscou o fortalecimento de suas identidades étnicas, a defesa de seus direitos e de sua territorialidade a partir da realização de variados encontros, seminários, audiências públicas, assembleias indígenas, reuniões propositivas, projetos de extensão, entre outras iniciativas.
Renovadas propostas museológicas foram pensadas a partir das interações com os próprios atores interessados – os povos indígenas, inseridos em contextos radicalmente ampliados e politicamente engajados.
Os indígenas no RN marcaram sua presença durante mais de 10 anos do Grupo Paraupaba no Museu Câmara Cascudo: deram um novo sentido às exposições que foram conjuntamente pensadas, seus artefatos e ressignificações simbólicas pulsaram vivamente; suas histórias, culturas e lutas compuseram o novo campo de relações entre instituições, pesquisadores, indígenas, poder público e a sociedade civil.
O museu passou a dar novos significados aos espaços de seu acervo ao realizar interações com as comunidades indígenas, ao extrapolar seus limites espaciais, dialogar e realizar atividades com esses grupos, respeitando e valorizando  sua memória e interagindo com sua cultura viva, renovada e atualizada.
Atualmente, os próprios indígenas se estabelecem e se apropriam dessas instituições para valorização de suas práticas culturais, de sua memória e histórias de resistência. São eles os agentes de sua própria cultura, da valorização e salvaguarda de seus artefatos, de seu material lítico e da recuperação de referenciais e rituais simbólicos (Toré), aspectos importantes para sua autoafirmação étnica.
O Museu Indígena Luiza Cantofa em Apodi, dirigido por Lúcia Tapuia Paiacu é um exemplo dessa postura corajosa e inovadora. A sua persistência na construção desse espaço, de suas estruturas e acervos, aos quais doou boa parte de sua vida, expressa em grande medida o quanto a cultura, a memória, a história desses povos aguerridos merecem ser lembradas e redimensionadas dentro de uma perspectiva legitimamente indígena.
Os Tapuia do oeste potiguar foram povos insubmissos que lutaram contra a opressão do colonizador por mais de trinta anos de resistência na conhecida Guerra do Açu. No Nordeste como um todo os indígenas Tapuia lutaram por mais de 70 anos na Guerra dos Bárbaros. São histórias que precisam ser conhecidas e valorizadas.
Mas, a história não para, e nesse front da resistência as batalhas continuam.
No período de 27 a 30 de março, Apodi, terra dos Tapuia Paiacu, será palco da VII Assembleia dos Povos Indígenas no RN (AIRN) e a IV Assembleia de Mulheres Indígenas no RN (AMIRN). São momentos políticos de importância singular para o movimento indígena no estado e para seu fortalecimento.
A I AIRN aconteceu no ano de 2009, organizada pelo Grupo Paraupaba, que se responsabilizou pelas articulações e organização junto à FUNAI de João Pessoa/PB, com o patrocínio da FUNAI de Brasília/DF; apoio da UFBA, UFRN, prefeituras municipais e movimentos indígenas. Tal encontro demarcou a importância do debate político perante o poder público, comunidade acadêmica e a sociedade de um modo geral. Foram pontuadas questões em torno da educação diferenciada, saúde, identidade étnica, território e etnodesenvolvimento.
A I AMIRN por sua vez, realizada em maio do ano de 2012, também foi organizada pelo GP, FUNAI, movimento indígena com apoio de parceiros (ICM-BIO; IBAMA, Prefeitura de Açu). Teve papel importante no empoderamento da luta das mulheres indígenas nas comunidades e no desafio de pontuar seus anseios e reivindicações nas áreas da educação, saúde indígena, gênero, terra e território, desenvolvimento sustentável perante o poder público.
Por fim, já se passaram 14 anos da I AIRN e 11 anos da I AMIRN . Os avanços no campo político são concretos. A resistência continua há mais de 500 anos. Pindorama resiste!
Natal, 8 de março de 2023

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