
Quando criança, eu, ao ver meus pais abrirem a porta de nossa casa, na feira da Avenida 1 no bairro do Alecrim, já me deparava ao amanhecer do dia do sábado com o vozeirão do vendedor de raízes curativas e cascas de paus milagrosos, anunciando seus poderes aos doentes e curiosos prevenidos. Havia um dito popular que advertia para não se guardar doença e raiva. Fulana de Pendências/RN escondeu a doença e se foi da noite para o dia. Em Brejinho/RN, um pai guardou uma raiva causada por uma filha malvada e morreu de ‘estopô’ do coração na mesma semana. Também não se guarda dinheiro porque o temido caixão fúnebre não vem com gavetas…
Os raizeiros, geralmente, são homens. Vendem também pomadas do peixe elétrico. Alguns mostrando o dito peixe e acendendo uma lâmpada, parecendo uma mágica do velho circo Continental que sempre ficava armado no bairro da Conceição, divisa com a Lagoa Seca do meu tempo. Os produtos negociados só não curavam o miserável do ‘liseu’ do povo. E eles mesmos advertiam aos olheiros de suas rodas: Meninos traquinos e gente lisa, sem dinheiro, favor irem caçando ninhos de aviões por aí!
O povo acaba preferindo a medicina ensinada por seus pais e avós. A medicação antiga e mágica indígena e afro, misturada às crendices europeias e atrelada às simpatias e tabus. A medicina caseira e naturalista das nossas avós e mães. Dos ensinamentos populares dos raizeiros dos matos e das sábias e místicas rezadeiras: A medicina popular é uma prática de cura concreta que, ao realizar-se, mostra aos médicos, biólogos, enfermeiros (os profissionais da medicina erudita) que, no campo da saúde, não há um único modo de se fazer ciência. A real existência desta ciência popular, voltada à cura, é uma resistência política e cultural às práticas que regulam o comportamento daqueles que acreditam que ciência só se faz na Universidade – Elda Rizzo de Oliveira – ‘O Que é Medicina Popular’, (p. 9, 1985).
Existem raizeiros que só vendem, repassam suas mercadorias e outros que vão às matas e negociam suas cascas e plantas medicinais colhidas. Agora, me lembrei de minha longa conversa com o rezador e doutor raizeiro da Cidade de Major Sales, Tadeu Santana (2005), que me deu uma preciosa aula: Doutô, a gente tem hora para ir cortá pau na mata. Tem que ir bem cedinho e sozinho, sem rebuliço. Rezar antes de sair de casa, viu, e na entrada da mata. Dizendo no caminho que não vai cortar ou derrubar nada. A mata tem dono e ela não gosta de machado e foice. E tem que chegar com a casca certa sem o sol esquentar. Tem dia bom e abençoado para ir. Da segunda à quinta-feira. Se reza pra São Bento e vai com fé. Chega em casa, vai preparando a garrafada. E a garrafada ou lambedô só serve se colocado em garrafa de cor escura. Se toma bem cedo e um banho frio depois. Durante o tratamento não se toma cachaça e nem cachete (comprimido) de médico. Também não se deita com mulher. Se toma sete dias e com muita fé na cura. O senhô use o limão todo dia, pingando na sua água de beber. E qualquê probrema com a garganta, use a rumã. A rumã é tão forte que não se toma mais do que três dias… Casca de cajueiro azedo; Casca de Ipê roxo; Casca de Quixabeira; Casca de Cumaru e Casca de Jatobá – cura tudo de inframação…
E quando o experiente raizeiro tomou ciência de minhas perguntas e respostas, durante a prosa medicinal, olhou nos meus olhos com firmeza e soltou-me a sua classificação com louvor e nota dez de banca de doutorado universitário: O senhor se fazendo de besta e eu aqui, matutando. O senhor é mermo passado na casca do alho viu! Uma das perguntas que eu mais ouvi em minhas andanças nas casas das rezadeiras e rezadores, foi: O senhor tem um pé de romã plantado em sua casa? O médico e escritor Iaperi Araújo, comentou outro dia comigo: Quem tem romã em casa não precisa recorrer a antibióticos para processos inflamatórios. E o meu amigo Iaperi, médico e folclorista, é um dos maiores nomes na pesquisa e estudos da medicina popular no Brasil/mundo. E o nosso RN, nem sabe…
Nas minhas pesquisas de campo, ouvi e consultei vários raizeiros e raizeiras, como são popularmente chamados os vendedores e vendedoras de ervas medicinais, nas feiras e mercados das cidades do Rio Grande do Norte, sendo eles, entre outros, os seguintes: José Francisco da Silva, da Rua Princesa Isabel, Cidade Alta. Flávio Antônio de Souza, 25 anos, que aprendeu com o pai a arte de vender ervas; Dona Maria das Dores Costa, 37 anos; Damiana Barbosa, 60 anos; Maninho, 70 anos, que criou os filhos e netos vendendo ervas na feira do Alecrim.
No mercado de São José de Mipibu, há vários anos, me atende o ‘seu’ Francisco Valentim Filho. E o ‘seu’ Maninho perguntava logo pela doença do seu cliente comprador: O senhor está sentido o quê? E rapidamente indicava o chá apropriado para sua cura. Seja casca, folha, garrafada ou lambedor. Cura de tosse, gripe, rouquidão, moleza no corpo… Como já citei, o assunto foi tratado por vários estudiosos do RN, entre eles, elas, o José Carlos Boucinhas, com o seu ‘Medicina Popular, Fitoterapia’, publicado no encarte do Galante/Fundação Hélio Galvão/Scriptorim Candinha Bezerra, Natal, 2000.
O povo, também, se agarra nas garrafadas e rezas de curas. Seguindo os ensinamentos do doutor raizeiro de Major Sales, a garrafada é feita com os seguintes ingredientes: – Quixabeira, raiz de urtiga branca, raiz de alcaçuz, raiz de guajirú, casca de ameixa preta, casca de cajueiro azedo, casca de angico, casca de mororó, erva doce, hortelã da folha grande, mastruz, corama, romã, batata de purga, cabeça de nêgo e água. Tudo colocado dentro da garrafa. E para ser tomado – Tomar uma colher de sopa, de preferência pela manhã, antes do banho. Durante o tratamento não comer carne de porco e nem tomar cachaça… E o povo chama as gripes de ‘Difluxo’ ou ‘Catarrão amalinado’. E a temida ‘Sezão’ é a mesma ‘Maleita’.
A temida tuberculose era a doença do ‘fim dos tempos’, também chamada de ‘Moléstia Magra’, onde o doente ficava isolado de tudo e de todos. Ora, o povo viveu muito desconfiado com objetos usados pelos tuberculosos. Falavam sobre a espantosa doença quase aos sussurros, nascendo daí as popularíssimas expressões dos adoentados atentos: Fulano tem ouvido bom de tuberculoso; está com ‘tosse braba de tuberculoso’. Tosse de ‘cachorro doido’…
E a medicina ‘bizarra’ para as curas do povo? O já citado amigo Iaperi Araújo, em seu belo trabalho ‘A Medicina Popular’ (1981), nos afirma: Escatologia é a terapêutica de substâncias ou ações repugnantes ou anti-higiênicas. Quem foi criança com um pé em cidade pequena, como eu, sabe e já tomou de tudo que é de chá, lambedor e coisas amargas. Minha mãe dizia que era para curar e nos recomendava para que os olhos ficassem fechados. Desciam de goela abaixo, coisas amargas e repugnantes, mas curáveis. Segundo o raizeiro, ‘seu’ João da feira de São José de Mipibu/RN: Nada doce e gostoso cura doença nenhuma, meu senhor!
Já o saudoso escritor, memorialista e folclorista da região do Alto Oeste do RN, Raimundo Nonato, relembrou em seu trabalho ‘Figuras e Tradições do Nordeste’ as meizinhas curáveis de seu tempo, estranhas aos nossos tempos atuais e modernos: – Chá de lagartixa, para dor de garganta. Ovo com breu, para asma. Banha de urubu, para erisipele. Chá de perna de pinto com mel de jandaíra, para puxado. Rosário de sabugo, para tosse de cachorro. Mistura de vinagre, cachaça e goma, para dor de barriga. Chá de flor de toco (fezes de cachorro), para sarampo e asmáticos. Chá de cavalo do cão, para papeira que desce. Chá de barata para dor de veado. Barro de casa de besouro, para papeira. Chá de grilo, para menino ficar falador. Chá de esterco de cavalo, para sezão. Pó de bucho de barata, para dor de ouvido e para estourar fleimão. Baba de fumo mascado, com leite de pinhão, contra veneno de cobra. Picada de abelha de exú, para reumatismos. Chá de pena de galinha pedrês, para tuberculose. Meter na boca um botão de ‘ceroula’, para picada de lacrau (escorpião)… (1958, p. 18).
Atualmente, observamos o povo procurando e tomando o lambedor da ‘Babosa’ para variados fins, inclusive o ‘câncer’. Também estão usando para alguns tipos de câncer – chá da folha de graviola e a famosa planta – ‘Orai Pro Nobis’. Todo doente deseja sua cura e a medicina do raizeiro, rezadeiras e rezadores são por demais procurados, apesar da larga propagação farmacêutica na televisão. Cala-te boca! E como eu disse no inicio dessa prosa, a medicina do doutor raizeiro só não cura o liseu do povo!
8 de Setembro, morada São Saruê/Nísia Floresta/RN.