Decolonizando os discursos: Povos indígenas, os verdadeiros mártires de uma história mal contada

Ilustração: Engenho de Cunhaú, Rio Grande do Norte, detalhe, Frans Post, 1645

No ano de 2005, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Norte aprovou, por unanimidade, a instituição do feriado de 3 de outubro, destinado a celebrar o chamado “Dia dos Mártires de Uruaçu e Cunhaú”. A medida, posteriormente sancionada pelo Poder Executivo estadual, revela a persistência da ausência de laicidade no Estado, ao submeter-se a crenças religiosas, em especial às da Igreja Católica.

Segundo registros históricos, os eventos que fundamentam tal celebração ocorreram no século XVII, especificamente no ano de 1645, durante o período do domínio holandês na capitania do Rio Grande (atual Rio Grande do Norte). As narrativas destacam ataques atribuídos a holandeses calvinistas, com participação de grupos indígenas, contra colonos portugueses e luso-brasileiros que se encontravam orando em uma capela. Os relatos descrevem minuciosamente as mortes violentas de mais de cem pessoas, ressaltando a brutalidade atribuída aos indígenas. Quatro séculos mais tarde, a Igreja Católica canonizou trinta dessas vítimas, reafirmando-as como mártires no contexto de tensões religiosas e políticas do período colonial.

Essa perspectiva, entretanto, insere-se em uma lógica narrativa colonial, que tende a valorizar os feitos dos colonizadores e a relegar aos povos indígenas o papel de agentes da “barbárie”. Tal construção historiográfica obscurece as práticas sistemáticas de opressão, genocídio e etnocídio perpetradas contra populações originárias, cujas terras e modos de vida foram destruídos, e milhões de vidas dizimadas em nome da expansão colonial.

As chamadas “guerras justas”, invocadas como justificativa legal para invasões, massacres e escravizações — sobretudo de mulheres e crianças —, integravam um aparato de dominação legitimado pelo discurso europeu, mais especificamente, da Coroa portuguesa. Esse era o importante papel dos “heróis” bandeirantes e exploradores dos sertões: massacrar e escravizar.

Estima-se que, no século XVI, a população no território indígena de Pindorama, que se tornaria o Brasil, ultrapassava seis milhões de pessoas. De acordo com o Censo doo ano de 2022, esse número atualmente é de 1.693.535 indígenas, revelando o impacto devastador da colonização sobre esses grupos sociais. Contudo, para além da dimensão demográfica, esses dados evidenciam a resistência histórica dos povos originários, que, apesar de sucessivos processos de expropriação, catequização forçada, destruição cultural, escravizações, disseminação intencional de doenças e genocídios, mantiveram estratégias de sobrevivência e continuam a afirmar sua existência no século XXI.

Diante desse contexto, é necessário problematizar a celebração dos chamados “mártires” da Igreja Católica, compreendendo-a como um dispositivo de manutenção de discursos coloniais que silenciam e invisibilizam a história e o sofrimento dos povos indígenas.

Atualmente, as organizações indígenas no Brasil reivindicam o cumprimento dos direitos assegurados pela Constituição Federal, sobretudo no que diz respeito à demarcação e proteção de seus territórios, ao acesso à saúde e à educação diferenciada, bem como ao reconhecimento e à valorização de suas identidades étnicas, culturas e modos de vida. Nesse sentido, a desconstrução de narrativas eurocêntricas e a promoção de uma perspectiva decolonial constituem passos fundamentais para a efetiva reparação histórica e para a construção de uma sociedade mais justa que respeite os povos originários, tanto no Rio Grande do Norte quanto em todo o território nacional.

………

Jussara Galhardo Aguirres Guerra – antropóloga

[adrotate group="3"]

[adrotate group=”1″]

[adrotate group=”2″]

Mais acessadas