O saudoso amigo e mestre Veríssimo de Melo, que na intimidade da minha amizade era chamado de mestre ‘Vivi’, nasceu em Natal, no dia 9 de julho de 1921 e veio a se encantar no dia 18 de agosto de 1996, mês dedicado mundialmente ao Folclore. Foi meu paciente professor-mestre nos estudos do folclore, um grande amigo. Sua grande paixão em vida foi alicerçada nas lições cascudianas, tendo o privilégio de recebê-las em vida, sendo o primeiro discípulo dileto do mestre da Junqueira Aires, Câmara Cascudo (1898-1986).
O irrequieto folclorista viajou quase todo o mundo, pesquisando, participando de Seminários e Congressos como representante do RN. Foi presidente da nossa Comissão Norte-rio-grandense de Folclore por décadas, até repassar, em 1994, para outro amigo, também um de meus mestres, Deífilo Gurgel. Todo folclorista, no Brasil inteiro, que conheci me disse que se correspondia com Veríssimo. Mandavam-lhes cartas e livros e dele também as recebia. Tinha um aflorado bom-humor e cordialidade. Sabia colecionar amizades, intrigas, não. Dizia-me rindo: “Nunca tive tempo para arranjar confusões e muito menos inimigos!”.
Eu, ainda bem jovem, teimoso e curioso, resolvi pesquisar por curiosidade e teimosia sobre o vasto e apaixonante mundo da cultura popular nordestina. Então, bati em três portas sagradas. Como dizia minha mãe, dona Estela, fui recebido como um parente dessas casas visitadas: “Meu filho, faça tudo para merecer voltar aonde você for!”. Explico: no casarão de Câmara Cascudo, eu ia a convite da saudosa amiga Anna Maria Cascudo Barreto, filha do mestre. Via o sábio erudito assim um pouco de perto, mas não ousava incomodá-lo devido ao seu problema com a surdez. Meu atrevimento não ia tão longe. Ali, tomava café com tapiocas, conversando com sua esposa, dona Dhalia, nos finais de tarde. Ana abriu-me as portas e passou-me a chamar com exclusividade de ‘Guto’, até sua partida em 15 de janeiro de 2015. Foi minha fiel amiga e, por que não dizer, irmã querida de toda uma vida…
No inicio dos anos 80, eu ia os sábados, pela parte da tarde, visitar a casa do mestre e amigo Gumercindo Saraiva. Verdadeiras aulas com muitas conversas e vinhos. Levava, nas ocasiões, um caderno grosso para anotar as dicas bibliográficas e transcrever o que lá eu ia lendo em alguns livros. Conversas, risadas, café, água ou vinho tinto seco da melhor qualidade. Às vezes, o folclorista e músico tocava seu bem guardado violino para um jovem visitante que nunca tocou nem sino da igreja de São Pedro, no meu bom e velho Alecrim. Coincidentemente, o querido folclorista partiu tocando seu violino, em 22 de maio de 1988, dois anos depois de Câmara Cascudo.
E a terceira porta que me foi escancarada foi a do saudoso mestre e amigo ‘Veríssimo de Melo’. Esse, gentilmente, liberou-me visita-lo todas as manhãs, de segunda à sexta, na sede da Academia de Letras. Dizia-me rindo, entre incontáveis cigarros e cafés: “Pode vir aqui, meu jovem, no meu escritório, quando quiser, será um prazer ensinar-lhe o que aprendi com outros que me ensinaram, como Câmara Cascudo”. Com muita paciência, ia me pedindo para anotar no meu velho caderno as principais obras sobre o folclore brasileiro e seus autores. E haja conselhos: “Não escreva nada sem antes consultar Cascudo e Mário de Andrade, viu jovem!”. Regra de ouro.
Diante de minha dificuldade financeira em adquirir livros raros e caros em sebos, de pronto disse-me, em menos de um mês de minhas visitas: “Vou te emprestar um livro de cada vez, pois, quem leva dois ou três, não volta para devolvê-los ao dono. Quando me devolver este, agora na próxima semana, leva outro de minha biblioteca”. Um dia, deu-me de presente uma caixa de papelão, recheada de folhetos de cordéis sobre Tancredo Neves e o Papa João Paulo II. Eram folhetos que foram pesquisados em seus livros, sobre o político mineiro que chegara à presidência e a visita do então Papa ao Brasil. Deu-me a caixa e a seguinte orientação profética: “Existe muita coisa ainda a ser pesquisada na Literatura de Cordel sobre o Rio Grande do Norte. Vá em frente, não se preocupe com os desocupados e invejosos. Por eles eu não terei feito nada!”. Quando lhe mostrei o meu trabalho sobre o Santo de Natal, Padre João Maria na Literatura de Cordel, muito contente, levou para casa e prometeu-me entregar com a sua apresentação: “Interessante que até agora, ninguém se deu ao trabalho de juntar os folhetos que existem sobre o nosso santo!”. E antes da entrega prometida, o mesmo viajou de vez dessa terra… Coisa que não havia combinado com as amizades e familiares…
Às vezes, quando o livro trazido de sua biblioteca era pouco volumoso, eu o lia ali mesmo em silêncio numa grande mesa no Conselho Estadual de Cultura, paginando-o, anotando e só sendo interrompido quando o mestre Vivi se aproximava com o convite: “Vamos dar uma paradinha, meu jovem, para uma água e um cafezinho”. Perdi a conta dos dias e dos livros, mas estão na memória seus conselhos e, principalmente, suas histórias sobre Cascudo, Zé Areia, Luís Tavares, Newton Navarro, Albimar Marinho, Roberto Freire, Cancão, entre outros intelectuais, boêmios e quixotescos personagens de seu convívio natalense. Cada história vinha acompanhada da inevitável risada, a qual chamava a atenção até da secretária da Academia, que não as ouvia, mas nos percebia às gargalhadas: “Pesquise sobre os tipos populares, os de rua, os esquecidos, os que ninguém quer mostra-los em suas obras. São as riquezas humanas das cidades que foram vistas por um João do Rio e Mário de Andrade, entre poucos!”.
O mestre Vivi sempre me dizia que o clima descontraído em ‘seu’ escritório, sua esposa não aprovaria em seu apartamento, por isso os nossos encontros teriam que ser sempre no térreo da casa de letras de Manoel Rodrigues de Melo. Quando chegava alguém amigo, ele ia atender em sua mesa de presidente do Conselho de Cultura, mas, quando se tratava de um daqueles tipos chatos, ele se saía com esta: “Venha outro dia. Desculpe-me que eu, no momento, estou ocupado com este jovem que veio aqui pesquisar sobre folclore”. Na saída do tal indesejado, haja risadas e cafés para comemorarmos a divina despedida, sem vassoura atrás da porta: “Você, lá na frente, se não se isolar das visitas, pedidos e telefonemas, não vai conseguir escrever nada, viu!”. Hoje, beirando meus 65 aninhos, o entendo muito bem! Quando soube de minhas pesquisas sobre folhetos de cordéis, tipos populares e rezadeiras, logo o mestre deu-me fortes injeções de ânimos: “Siga em frente, não desista sob hipótese alguma, espalhe logo, pois os espertalhões gostam dos segredos para saírem na frente!”.
O mestre foi professor universitário de etnografia e antropologia da UFRN, quando a universidade ainda ventilava grandes nomes. Jornalista, compositor, pesquisador, conferencista e folclorista. Além de boêmio e tocador de violão, me dizia que as últimas tinham sido duas profissões boas do seu passado… E a gargalhada me confirmava a honraria de ter sido até guia do conhecido cego Raimundo Bamba: “Vá atrás de Raimundo e escreva sobre ele. É um dos que estão aí esquecidos…”. Nem precisa dizer aqui que segui muitos de seus ensinamentos e conselhos. Ele, um sábio professor com idade de ser meu pai e eu, um jovem pobre aprendiz, com idade de um de seus filhos…
Em nenhuma universidade eu teria um educador da seriedade e saber de um Veríssimo de Melo. Atendi fielmente aos pedidos de dona Estela: “Meu filho, procure boas amizades. Árvores que possam lhe oferecer sombra!”.
Tempos depois, o via sempre abrindo sua caixa postal no Correio da Rua Princesa Isabel, no qual, por coincidência, também eu tinha uma. Ao me ver retirar uma cartinha, o mestre, carregado de cartas e livros vindos do mundo todo, para consolar-me, dizia rindo: “Calma, vai chegar o seu tempo. Um dia, você não vai ter tempo para responder as cartas e pedidos que lhe chegarão!”. E foi naquela agência dos Correios o nosso último encontro e bate-papo. Na ocasião, um pouco calado e se queixando que ia se submeter a uns exames: “Talvez até botem a culpa no uísque e não no leite, viu!”. E contou-me, novamente, em nossa ‘despedida’ a história de Zé Areia, seu biografado, a respeito de um anjinho que passara em um caixãozinho perto de um bar do bairro da Ribeira, na presença do boêmio Zé Areia. Esse anjinho só tomava leite…
Faltando apenas quatro dias para o dia do folclore de 1996, mestre ‘Vivi’ partia de sua Natal. Encantou-se com seu coração grande e generoso de um professor, com passo sempre ligeiro de quem era magro para as terras de São Saruê, onde as barrancas são de cuscuz e o rio é de leite puro. Terra de verdadeiras amizades, bate-papo, caju… Tudo puro e santo, sem os corantes e conservantes artificiais do século da inteligência artificial…
E uma grande coincidência ocorreu-nos depois de alguns anos de seu encantamento. Minha filha Elaynne, formada em Letras na UFRN, passa no concurso para professores da rede municipal de ensino de Natal e começa a trabalhar justamente na ‘Escola Municipal Veríssimo de Melo’, no bairro de Felipe Camarão. A citada professora, a qual não teve o privilégio de ser amiga do mestre patrono de sua escola como o seu pai, me pede uma fotografia e livros do mestre Vivi para o acervo da sua recém-escola. Na hora veio-me um impulso do coração para ligar para Diógenes da Cunha Lima, também grande amigo de Vivi, e pedir-lhe ajuda nesta ‘intriga do bem’. Diógenes atende-me de pronto, dizendo-me não se tratar de coincidência nenhuma, mas sim de um pedido do próprio aos amigos: “Já que ele quer que as crianças os conheçam, vamos colocar sua foto em destaque na escola que o homenageia!”. Marcamos o dia e, numa manhã de sol com o pátio cheio de crianças estudantes, chegamos lá, eu, Diógenes e Severino Vicente, com uma grande moldura do retrato colorido do mestre Vivi, doada por seu grande amigo, advogado e presidente da Academia de Letras do RN. Coincidências que só os espiritualistas explicariam, não eu…
Aqui está, embora longo, um pouco do meu vivido em uma amizade da qual me restou a gratidão muito bem repassada aos seus três filhos – Sílvio, Fernando e Monique! Ao neto, especialmente a Guilherme, tão falado por ele a mim. Minha eterna gratidão! Agora, dia 27 de julho, o mestre foi homenageado com o seu nome a uma Maçonaria, em Natal. Poucas homenagens, mas todas merecidas e justas. Meu querido e saudoso mestre ‘Vivi’, sei que isto tudo é muito pouco, mas como dizia você: é melhor do que ser esquecido. Natal, nossa terra, não pode esquecê-lo, jamais!
Morada São Saruê, Nísia Floresta (RN)