

por GUTENBERG COSTA // Escritor e folclorista
SEMANA SANTA. Incontáveis folcloristas abordaram a temática em questão através de artigos, crônicas e livros, entre eles o nosso mestre Câmara Cascudo, em sua volumosa obra Superstição no Brasil. Cuja edição que eu tenho na biblioteca é da editora Global (2002). Mas, no meu caso, vou apelar para a minha memória sessentona e voltar ao meu tempo feliz e sem traumas de minha infância.
Todo mundo mais idoso, ao seu modo, também recorda a sua particular Semana Santa. Seus rituais, crendices populares e superstições religiosas. Hoje, coisas do passado e lembranças. Pena que os jovens nada vejam disto pelos seus modernos celulares. Os tais influenciadores digitais não entendem e nem a viveram patavina, como nós.
Eu sempre ia para Pendências/RN e, da casa de meus avós maternos, não só participava como via de tudo. Fui criado no antigo catolicismo, sendo assim, era puxado, quisesse ou não, para as missas e procissões. Minha saudosa dona Estela, logo no domingo de Ramos levava um ramo verde para ser benzido na Igreja de São Pedro do Alecrim, em Natal, e se a mesma estivesse em sua citada cidade, ia seu bento na Igreja de São João Batista. O dito ramo era afixado na porta da entrada de nossa casa. Se tivesse uma fita vermelha para amarrá-lo, melhor ainda. Na quarta-feira de “trevas”, ninguém podia tomar banho, muito menos comer as deliciosas guloseimas que eram vendidas pelos pregoeiros nas portas. Férias para as cocadas de rapadura, pirulitos, geleia e algodão doce, entre outros saudosos doces que a minha glicose alta ainda teima em lembrar. No meu tempo de infância não tinha chocolates e ovos de páscoa, que eram coisas para os meninos ricos. Para lanchar, eu e meus seis irmãos só tínhamos rapadura e ponche de limão!
O antigo rádio “esquenta rabo”, de válvulas e marca “Canarinho de Ouro” ficava mudo da quarta a sexta feira. Paciência para as novelas da Rádio Poty e as músicas animadas de então. Depois, chegou a vez da televisão RQ ficar fora da tomada. Muita calma para o chato Flávio Cavalcanti e também ao risonho Jota Silvestre, da TV Tupi. Nem as traquinagens e brincadeiras infantis podiam ser lembradas. Dar risadas em casa, diante de meus pais, nem em sonho. Alegria nenhuma, pois, segundo as regras só eram reservados tristeza e jejum. Tudo o mais era pecado, mas eu rezava escondido era para acabar logo e chegar o alegre sábado de aleluia.
A restrição alimentar era muito maior do que a lista de compras da feira! Namorar, nem pensar. Bares e cabarés fechados. Era tanto sofrimento, que diziam baixinho: “quem mais sofria da quarta à sexta eram as pobres raparigas, sem as suas costumeiras visitas de homens bem casados e católicos”.
Tanto em Natal como em Pendências eu caia na algazarra divertida para confeccionar os bonecos, tradicionalmente chamados de Judas. Seria uma vingança religiosa e discriminatória de um povo? Meu pai, Geraldo Costa, mesmo sob protestos de minha mãe, doava camisa e calça para a feitura dos pobres surrados e queimados bonecos. Dona Estela tinha uma forte superstição de que não se queimava roupas de gente viva. A conhecida “Malhação” varava a noite toda. Cada casa pastorava, diante do perigo dos roubadores dos bonecos, que os arrancavam dos postes. Seria uma desmoralização ao nosso trabalho artesanal de confeccioná-los. A mangança seria grande para nós.
Em meio às atitudes santas e profanas tinha o roubo de galinhas. Minha mãe as prendia logo no nosso pequeno banheiro, mesmo assim não escapava das presepadas de seus cinco filhos. A diversão maior era chamar a vítima do roubo para saborear a sua própria galinha ou galo. Lembro de meu irmão Geraldinho fazer chorar por vários dias uma prima de nossa mãe, finada Elza Medeiros, que perdeu seu estimado e idolatrado galo para a cachaça presepeira pendenciense. Eu confesso que apenas ajudei meu tio materno Armando a roubar vários pombos, em uma noite de uma sexta-feira, de seu próprio irmão Aldemir, que muito praguejou o larápio, ou nesse caso, a dupla familiar de ladrões.
Em Pendências ainda presenciei o testamento de alguns Judas, antes de sua tragédia covarde: deixo meu chapéu para fulano careca. Ficará os meus sapatos para sicrano, que só usa alpercatas… a gozação popular ia nessa direção, juntando humor e ousadia com o povo da cidade inteirinha. Também vi de longe uma turma de corajosos tentarem “serrar” meu velho tio Maneco Medeiros, à meia noite da sexta-feira santa. Batidas em latas, serras, chocalhos e até som de garrafas vazias: “Serra, serra serrador, serra Maneco, que Judas mandou…” A crendice era que se o velho não expulsasse os perturbadores, este morreria em pouco dias. E o citado meu tio avô, muito esperto, já ficava com sua espingarda de soca entupida de pólvora e o seu antigo pinico recheado de urina fedorenta de vários dias. A carreira era grande dos malfeitosos, entre estes, até seus sobrinhos em primeiro grau. E o maior conversador do mundo, Maneco, sabiamente morreu bem velhinho, enterrando muitos dos seus ditos desafetos circunstanciais de Semana Santa.
Aqui em Nísia Floresta, aonde pretendo encerrar a morada, quando cheguei não vi nem roubo de galinhas nem Judas nos postes, graças a honestidade e a calmaria vigente da comunidade quase rural. Ia até esquecendo que na procissão do saudoso padre Zé Luiz, lá em Pendencias, tinha o barulho ensurdecedor de uma velha “matraca”, que é um instrumento musical para fazer barulho. Dizem que até serve para espantar as maldades humanas. Tenho uma aqui em casa, presente do meu inesquecível amigo Monsenhor Expedito, de São Paulo do Potengi. É preciso dizer aos religiosos de hoje: um Santo homem nessa desgraceira terrestre de guerra e fome. Entre outros pecados, imperdoáveis.
Para encerrar essa conversa de miolo de quartinha, eu recordo que todos os meus pecados infantis, praticados durante a Semana Santa, eram ligeiramente perdoados, quando os padres de então me ouviam nos antigos confessionários e davam os seus perdões e pequenas penitências: “Reze dois Pai Nosso e três Ave Marias!”. Cumprido o acertado pacto sacro, eu de alma limpa e locupletado de alegria com a volta da santidade, ia gritar nas calçadas e ruas de areias no meu bairro do Alecrim dos anos sessenta, já enjoado de tanto peixe e sofrimentos inquisitoriais: “Aleluia, aleluia, carne no prato, farinha na cuia!”
Morada São Saruê, Nísia Floresta/RN.