MALAZARTES – Ilustração de Jô Oliveira

 

por GUTENBERG COSTA // Escritor e folclorista

“Cachorro pra onde vai leva suas pulgas” – É um dito popular muito conhecido no Nordeste. Quem viaja, sempre embarca com suas manias e seus gostos, e trás “As sarnas e pulgas dos caminhos!”, como dizia meu pai, Geraldo Costa.

No meu caso de andarilho, só as surpresas boas e mil histórias para contar aos netos. A minha mania é ficar atento às presepadas vistas pelas ruas, becos e esquinas visitadas. Nem preciso anotar algumas, pois ao chegar em frente ao notebook as histórias vêm repentinamente à tona, como o amigo Nilo diz: “um passe de transmissão mediúnica”.
Digo que levo na velha mala um azougue, pois sempre encontro em minhas corriqueiras andanças os chamados tipos populares, geralmente chamados de “mungangueiros” e “mungangueiras”. Ou como queiram alguns, os “presepeiros” e as “presepeiras”. Anjos da alegria e bondade.
Em 1997, eu estando na cidade do Assu/RN assistindo a uma missa na Igreja de São João Batista, ato religioso presidido pelo então Padre Canindé, observei uma senhora morena conhecida como Maria, bem sentada no primeiro banco de frente para o referido religioso. Mulher de trejeitos que em cidades pequenas são considerados de “gente com juízo desaprumado”. Esta, ficava o tempo todo na missa, ora dando gargalhadas, ora falando besteiras e imitando os rituais feitos pelo citado sacerdote. Até que, em certo momento, o Padre Canindé sem aguentar suas mungangas, soltou as estribeiras em voz alta em direção a “mungangueira” Maria Doida do Assu: “Maria, fique bem quietinha na minha missa. Deixe de suas cavilações e mungangas aqui na Igreja”.
A reprimenda do velho Padre Canindé botou o juízo de Maria no lugar certo na mesma horinha e, até terminar a dita missa, ela não deu um pio sequer até o final do ritual católico. E bem que lá em Pendências-RN, quando eu era menino, ouvia muito dos mais velhos a seguinte expressão popular: “O remédio para um doido é um doido e meio”.
Em Patu/RN, durante uma festa da família Godeiro, fui apresentado pela amiga e médica Sônia Godeiro ao tipo popular conhecidíssimo por Zé Doido. Sentamos ao lado um do outro e eu fiquei de olhos e ouvidos atentos aos seus gestos e falares. O garçom trazia na farta bandeja, cerveja, vinho e cachaça. Zé Doido, que não era besta, como eu, agarrado numa caneca grande de ágata, pedia para colocarem um pouco de tudo na caneca dele. Os garçons estranhavam sua atitude etílica e ele me filosofava dando gargalhadas: “Me diga professor, se é preciso separar, o que se vai tudo para um lugar só?” Quando começaram a servir a carne assada na brasa, eu recomendava logo que a minha porção seria a mais magra, sem um pingo de gordura. E o meu vizinho de banco, Zé, bem magrinho e sem doenças para dar lucros aos médicos, ao contrário de mim, pedia a parte mais gordurosa: “Quanto mais gordurosa, melhor!”. Depois, o mesmo sorrindo feliz me dava suas sinceras explicações: “Professor, saiba que a gordura é lubrificante para as dobradiças enferrujadas. Eu subo lajedo e pulo até cinco metros de altura. E o senhor reclamando de dores nas pernas e na coluna. Só vive dando lucro aos médicos de Natal!” É muito mais fácil botar bode embaixo de biqueira em dia de chuva do que convencer o mungangueiro Zé Doido, de Patu, a viver ao nosso modo tecnológico e global. Não adianta, nem que a vaca tussa!
Em Pendências/RN, terra de minha mãe e irmãos, conheci o maior mungangueiro da região. O senhor Edilson, que recebendo uns trocados para seus cigarros e cachaças, me fazia tudo que eu precisava. Até segurança pessoal na feira, mercado e bares. Quando alguém encostava perto de mim para pedir alguma ajuda financeira, o Edilson fazia mil mungangas na cara deste pedinte: “Saía de perto do doutor. Não venha perturbar o homem, pelo amor de Deus. Ele já vem de Natal esfriar a cabeça aqui e você aparece, feito alma penada dos infernos. Vá tirando daqui seu fela da puta!” Não adiantava meus protestos humanitários, de jeito nenhum.
Um dia, me pedindo total segredo, o presepeiro Edilson contou-me como convenceu o então médico, perito do INSS, que estava cortando até a mãe do próprio dos benefícios de doenças. Não escapava ninguém, mesmo levando o coveiro à consulta perita. Podia ir de muletas e cadeira de rodas: “O doutor sabe que eu fui o único doido que permaneceu com o benefício. Eu passei três noites acordado, deixando os olhos roxos e bem fundos. Fumei cinco carteiras de cigarros e queimei os dedos. Na hora de ir à consulta do miserável eu fui com a roupa mais suja e rasgada que tinha. Pedi a mulher para cozinhar dois ovos, e comi com um punhado bem grande de sal. O médico, coitado, até assombrou-se com medo de mim. Mediu minha pressão e viu que estava nas alturas… eu estava para matá-lo imprensado na parede com a cadeira dele e tudo, viu. Aí ele, com medo, me disse que ia aprovar mais seis meses de benefício pra mim!”
Juro a vocês que a cena de Edilson me contando e dando pulos, imitando o tal médico que com muito medo e juízo não o cortou do INSS, daria um documentário dos mais humorísticos do mundo. Há, se o mestre e saudoso Ariano Suassuna tivesse batido cara a cara com o Edilson, quantas histórias não teria contado e escrito em vida. E o mestre paraibano compreendia muito bem os chamados “doidos”.
Chego na cidade de Campo Grande/RN, mal deixo o matulão na casa de minha segunda sogra, corro para o mercado com o intuito de saborear uma galinha caipira torrada, conversar, ouvir histórias e tomar umas e outras, que ninguém é de ferro, como dizem. Prosa vai e anedotas vem, um sujeito, alto, tipo galego, bem forte e de olhos azuis, puxa um tamborete junto ao meu, no ponto comercial de dona Zefa, e sapeca na história do velho ranzinza e maior mungangueiro da cidade: “Doutor, como não sou baú pra guardar segredo, vou lhe contar que o dito cujo se fez de doente só para conhecer os sete filhos que tinha. Chegou a ficar de olhos fechados e sem comer por dias, só para ouvir o que sua filharada dizia dele. Vinha um e pedia à mãe para vender tudo antes do pai bater as botas. Outro pedia a Santana, nossa padroeira, que o levasse logo desta pra outra. Só teve um deles que chorava e pedia a Deus pela melhora do velho pai, que se fazia de morto para enganar até o coveiro. Dias depois, o pai se levanta e dali em diante passa a ajudar o único filho que dele gostava e merecia, até porque era o mais pobre e de coração bom”.
E o contador de histórias do Oeste ainda soltou a matraca final: “O filho pobre recebeu boa ajuda do pai em vida, que quando morreu deixou pra fazer raiva vingativa um baú velho cheio de dinheiro antigo para os outros. Dinheiro que não serviu mais pra nada, viu!”
Quem na minha faixa de idade não lembraria agora das histórias contadas de Trancoso? De Pedro Malasarte? Camonge e João Grilo? Entre outros personagens, divertidos e oriundos das mungangas orais dos nossos bisavós e avós.
Para encerrar essas mungangas por hoje, eu deixaria a frase dita pelo saudoso poeta gaúcho, Mário Quintana: “…os irmãos se conhecem na herança e os filhos, na velhice…”
Essa conversa comprida é para fazer um brinde a quixotesca editora “Munganga”, arte dos amigos Aírton e Victor. Vida longa aos seus filhos impressos que estão ainda por vir!
Morada São Saruê, Nísia Floresta/RN.

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