Colcha de retalho e “Seu João” da Feira do Alecrim

Feira do Alecrim – Fotografia: Canindé Soares

Já disse isso várias vezes, mas vou repetir para algumas pessoas que se admiram porque eu deixo de ir ver as belezas e luxos dos shoppings para ir tomar café aos sábados em feiras populares.

Há cinco anos faço um rodizio. Uma semana em São José de Mipibu e, outra, em Natal. Parodiando o genial Guimarães Rosa, saí da feira, mas esta está arraigada em mim. Lembro todas as manhãs, quando estou molhando minhas plantas do quintal e roseiras do jardim, das antigas cantorias de viola, dos romances declamados dos vendedores de folhetos de cordéis. Dos espertos vendedores de pomadas e garrafadas milagrosas, prometendo, como marketing, a tão esperada briga da cobra com o tijuaçu, cada bicho em seu quadrado, ou seja, uma pequena mala. Foi o primeiro “fake News” que eu tive conhecimento na vida.
Paciência, meu editor, mas como esquecer os pregoeiros com seus vozeirões, anunciando com muita criatividade e humor os seus produtos? A força descomunal de homens fortes, carregando os balaios bem pesados nas suas cabeças? Os artistas populares, tipo os circenses, fazendo mil mungangas, formando uma grande roda no meio da feira, do meu Alecrim?
Não me sai da memória, o que ainda me presta, o velho Tributino bancando seus jogos de azar. Rodeado de comparsas chamados de “tapias”: Essa carta é branca, essa também é. Essa aqui é a preta da sorte. Vou embaralhar e quem acertar aonde ficou a preta, ganha o dobro da aposta. Saiam de perto, os meninos traquinos e os velhos lisos…”.
Os investigadores de Polícia experientes, Otávio Canhoto, Zé de Neném, Pernambuco e Abílio Gomes de Lima, não davam conta de tantas bancas de jogos espalhadas entre as Avenidas 6 e 9. A feira do Alecrim era um mundo à parte. Pouquíssimos ladrões batedores de carteiras. Na época da acirrada censura, só a “Maria Sai da Lata” soltava os seus maiores palavrões do mundo como se estivesse em casa.
Mudando de pau pra cacete, hoje vou lembrar de coisas que não havia confessado a vocês, meus pacientes leitores e leitoras, por exemplo, das colchas coloridas de pano que eram vendidas aos montes em algumas bancas de feiras. Trabalho árduo de senhoras costureiras/artesãs, que, com esmero e criatividade enchiam meus olhos com alegria de criança naquela arte popular tão colorida. Uma mistura de pedaços de retalhos. Minha mãe, dona Estela, como outras sem dinheiro farto em casa, comprava as ditas colchas de retalhos para cobrir mesas e camas. Hoje, insistentemente procuro as tais colchas e não as encontro para cobrir minha cama daquele abençoado colorido – verde, encarnado, azul e branco, tudo misturado com um belíssimo encantamento visual. Era uma verdadeira marca em casa de pobre, limpo e feliz.

Aqui, na minha morada, ainda me restaram os pequenos panos em retalhos que me servem para forrar as minhas velhas e boas cadeiras de balanço na parte dos assentos. As famosas colchas, só na lembrança, feito a canção do chorão Bartô Galeno.

Esse “cerca Lourenço”, como se dizia lá em Pendências de meus avós, é para chegar finalmente na prosa que eu tive semana passada com o velho “Seu João Batista”, vendedor de parte das minhas frutas, bem recomendadas, por meus amigos médicos – banana leite, abacate, melão e melancia. O João já está beirando oitenta primaveras. Forte e bem queimado do sol escaldante da nossa Natal. Trabalha em feiras desde adolescente. Vive de uma miserável aposentadoria que mal dá para comprar seus “cachetes”. Segundo o próprio, eu vou chegar lá também, se escapar de tudo – “Doutor eu tomo quase 10 comprimidos por dia. É para pressão, colesterol, diabetes, coluna e até enxaqueca!”. Não disse a ele que tomo só três, porque guardo segredo de misérias e só espalho coisa boa para não dar gosto, como se dizia ao cão e desafetos.
O João é conversador, daqueles que não colocaria uma vassoura de cabeça pra baixo, atrás de porta, para afugentar as visitas. Dou sempre uma desculpa já agendada – Só me vou embora porque moro há mais de cinco anos em Nísia Floresta, se não ficava nessa boa conversa de calçada de bodega, até o final da feira.
Além de “vagabundos”, como disse o grande trabalhador Fernando Henrique Cardoso, temos algumas coisas em comum. “seu João” não mora na capital. Mora em Macaíba, de seu Mesquita. Cria galinhas para comer os gostosos ovos caipiras. Seu quintal é recheado de árvores frutíferas. Tem bom humor como eu. Não se bateu ainda com depressão e Pix. E, assim como eu, só tem um aparelho televisivo na sala de sua casa. Já vive, também, com a segunda mulher e só usa óculos quando vai ler alguma coisa. É orgulhoso de ter feito o quarto ano primário como minha mãe – Basta, sou do tempo da palmatória e da carta de ABC, mas não troco meu saber com certos doutores que aqui chegam em minha banca, me perguntando tudo que é besteira. Cadê os diplomas deles? Será que são só para enfeitar, feito peito de homem?.
Até parece que Deus juntou simplicidade e honestidade em um só ser humano. Vive informado com o que é necessário para se viver bem, igual a mim. Segundo ele, não assiste cabaré em sua televisão, como BBB e outros troços. Dorme com as galinhas e acorda com os galos, também como eu. Na despedida, tive a curiosidade de sempre e lhe perguntei se ele estava sabendo da guerra da grande Rússia contra a pequena Ucrânia – É certo que sim, meu doutor, só assisto, como o senhor, os noticiários. Não sou homem para perder tempo com fofocas das vidas desses cantores e cantoras de hoje, não. Eu acho o seguinte, depois dessa desgraceira da pandemia que veio de lá do fim do mundo, chegou agora essa guerra. O senhor num sabe, que depois da queda sempre vem o coice para completar a miséria. Pobre só vive num rebuliço dos diabos. Esse mundo tá uma fuzarca de cachorro em dia de lua cheia. Tá que nem uma colcha velha de retalhos. Ninguém emenda esse mundão descosturado e briguento, não viu!”.

Saí dali muitíssimo mais sabido e lembrando da grande aula recebida do mestre feirante, que diferentemente de mim, nunca entrou em um prédio de faculdade em sua vida.

Na volta, no barulhento ônibus da Empresa Litorânea, recordei a leitura que fiz em uma das crônicas do genial Umberto Eco (1932-2016), em seu livro póstumo Crônicas de uma sociedade líquida (2017), em que o inteligentíssimo Eco lembra a tragédia histórica do navio Titanic, que no meio das mortes por afogamentos a orquestra tocava uma alegre música, tranquilamente no seu salão principal, como se nada tivesse ocorrendo de anormal naquele momento. O citado cronista humanista deixa-nos bem claro, em seu texto, que não podemos ficar indiferente às atrocidades, mesmo que sejam além de nossos quintais. Me desculpe, comandante Nelson, mas o seu Titanic está na Ucrânia e seria injusto e desumano não chorar com as crianças ao ter que sair às pressas, como ferozes inimigos do mundo. Além de queda, coice, como filosofou o sábio feirante “Seu João”, de cabecinha branca e muita sabedoria na cachola. Música, agora não, maestro!
Por essas e outras, vou continuar indo às feiras comprar minhas quinquilharias e adquirir sabedoria popular diretamente de quem está longe da inveja e maldade deste século informatizado. E como dizia o nosso pouco estudado, mestre Câmara Cascudo (1898-1986) – Conversar e ouvir o povo é uma arte!
Quem sabe se é por isso que eu, raramente, dou de cara com um político em nossas democráticas feiras. Cala-te boca, “mamãe falei”!
Morada São Saruê, Nísia Floresta/RN.

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