Ilustração: Capa de livro

Desde que comecei a ler, passei a observar que os “para-choques” dos caminhões velhos de meu pai tinham frases ditas filosóficas escritas com tinta óleo. Geralmente, em preto ou vermelho, para causarem destaque ao leitor curioso.

 

por GUTENBERG COSTA // Escritor e folclorista
 
 
Eram vistas nos para-choques ou em borrachas traseiras dos velhos caminhões. “Seu” Geraldo Costa era um tipo ranzinza, nem viveu dando risadas e muito menos fazendo apologia ao bom humor do povo, como seu sétimo filho caçula. Anotei de seus caminhões velhos, as chamadas religiosas ou místicas, como estas: “Deus me guie”; “Deus é meu protetor”; “Dirigido por mim e guiado por Deus”, entre outras. Acho até que fizeram efeito positivo na vida do meu pai, um motorista e proprietário de caminhões das marcas Ford e Chevrolet, do tempo que tinha que esquentar o motor para o mesmo dar partida.
Tinha até um deles que era preciso uma manivela rodada na frente para dar sinal de vida. O certo é que papai se foi beirando as oitenta primaveras, vítima de vários acidentes sérios, mas nenhum desses foi a causa de sua partida. Ele dizia que não era “peru de natal para morrer de véspera!”
Sabe-se que essas frases provêm da cultura popular do nosso povo com variados temas, mas em grande parte em tom humorístico de gozações, nas quais se vê o profano misturado ao sagrado. Ninguém escapava, inclusive, Adão e as pobres sogras: “Feliz foi Adão que não teve sogra e nem caminhão”.
Atualmente, talvez com a censura do politicamente correto e a modernidade global, essas engraçadas e reflexivas filosofias de para-choque já estejam nas raridades vistas e anotadas por mim em minhas viagens. As que eu costumo ver são as modernas do tipo religiosas, como as tais: “Este é presente de Deus”; ”Este é propriedade de Jesus”. Ou – “Este foi Deus que me deu”. Com essa demasiada fé declarada do século XXI, tempo de milhares de templos religiosos, os ditos automóveis adesivados não dão uma carona nem a Jesus se esse voltasse e ficasse nas paradas, no sol e chuva, como eu.
Antigamente, até diriam – e o Jesus é só o proprietário da boca pra fora! Hoje, parecem frases de marketing para santos do pau oco. Muita farofa e pouca carne. Recentemente, enviei meu comentário para algumas amizades sobre os tais famosos influenciadores digitais e seus milhares de seguidores. Mandei avisar logo que não sigo ninguém e também não quero ser seguido. Enviei uma antiga filosofia de automóvel anotada por mim de um caminhão velho na cidade de São José de Mipibu/RN: “Não me siga que eu não sou novela”. Em cada viagem que eu fazia minha agenda voltava cheia. Geralmente, nem dava para anotar a placa e a Cidade oriunda do carro e, às vezes, terra natal do seu dono.
As frases eram sempre escritas/pintadas na parte traseira em cores vistosas para os leitores e as leitoras rirem ao lê-las. Algumas pessoas me indagavam curiosas ao me verem anotando-as: “O senhor ainda perde tempo anotando essas besteiras? Não tem o que fazer na vida?”. Vida de folclorista e doido, só eles sabem, como me dizia o saudoso mestre Ariano Suassuna…
E por falar em folclorista, tipo diferente e escasso, muitos se dedicaram ao estudo das citadas filosofias e publicaram seus trabalhos em livros, os quais estão em minha biblioteca, como Mauro de Almeida e Amir Mattos, entre outros. A filosofia aqui abordada, consequentemente, veio com o bom humor dos caminhoneiros e suas expressões populares ditas e ouvidas entre eles em seus tempos, nas conversas de beira de estrada. Nesse aspecto, temos que destacar alguns estudiosos folcloristas do passado, como o nosso grande mestre Câmara Cascudo, com o seu relevante trabalho “Locuções Tradicionais no Brasil”; Leonardo Mota, com o seu “Adagiário Brasileiro” e Raimundo Magalhães Júnior com o “Dicionário de Provérbios, Locuções, Curiosidades verbais, Frases feitas, Etimologias pitorescas e Citações”, entre outras dezenas de livros que se referem às frases e ditos populares filosóficos.
Por falar em livros como indicação bibliográfica, é relevante apontar a valiosa obra do saudoso amigo e mestre Deífilo Gurgel, com seu “Espaço e Tempo do Folclore Potiguar”, no qual há uma parte reservada para a filosofia de caminhões. Em nossas viagens, ele sempre anotava tudo que via pelo caminho. O folclorista, antes de tudo, é aquele tipo que vê e anota o que ninguém observa e, às vezes, até desvaloriza.
Até hoje ainda ouço certos conselhos para não frequentar as feiras e mercados. Parece até que é proibido conversar com o povo simples e colher suas sabedorias. O luxo é mostrar fotos no Facebook ou Instagram dos restaurantes nos shoppings, como diria hoje, com certeza, aquele finado e refinado estilista costureiro “Denner”…
Vou logo lembrando que no passado já escrevi um artigo para o saudoso jornal impresso “De Hoje” sobre as filosofias de “Para-choques”, que tinham sido vistas e anotadas em minhas viagens e depois foram publicadas em meu livro “Cultura Popular – Vivências e Anotações de um Pesquisador Folclorista” (2004). Vou tentar resumir algumas anotadas.
Em um velho fusca que vi passando na nova Avenida Nevaldo Rocha, a frase no vidro traseiro dizia assim com um belíssimo humor: “Se é para morrer de batida que seja de limão”. E em outro fusca bem antigo, passando na avenida 2, vi um alerta que parecia com a minha cara e filosofia de vida: “Não mangue, é velho, mas já tá pago”. Outra, anotei de um Fiat, em 1993, o seguinte desabafo bem realista: “É fácil falar de mim, difícil é chegar aonde estou”. Em uma camionete, vi de cara que o motorista era de corpo fechado como eu: “Eu sou blindado pelo sangue do Cordeiro e nem o inferno inteiro reunido tem o poder contra mim”.
E chegando em Macaíba/RN, logo vi um caminhão bem usado encostado próximo a igreja do centro, com uma brincadeira às mulheres. Hoje, data vênia, daria cadeia ao seu proprietário: “Se mulher fosse verdura, eu queria ser camaleão”.
Outras, eu anotei na correria sem as devidas placas e marcas. Algumas, impublicáveis nos dias atuais. De um caminhão em Macau/RN: “Se o amor é cego, o negócio é apalpar”. Em Mossoró, próximo ao mercado velho eu anotei: “Sapo tem olho grande, mas só vive na lama”. Nem os próprios motoristas escapavam de seus aflorados e criativos humores. Em Currais Novos/RN: “Motorista apressado é lembrado no dia 2 de novembro”. Tive duas sogras quase iguais à minha mãe, a santa dona Estela. Anotei estas duas em Natal/RN, mas sem aprovação por minha parte. De um caminhão na feira do Alecrim: “Não mando minha sogra para o inferno porque tenho pena do diabo”. No bairro da Ribeira, perto da antiga Peixada Potengi, em 1979: “Casei com minha cunhada para economizar minha sogra”.
E durante a acirrada campanha política de 1978, um eleitor desaforado e desacreditado do mundo, em Natal/RN, esbravejou em sua velha Kombi de cor branca, estacionada na Cidade Alta: “Só voto em prostitutas, cansei de votar nos filhos delas”.
Recentemente, avisando as boas amizades que ia tocar nesse assunto do “tempo do ronca”, a estimada amiga jornalista e escritora Rejane Cardoso, aprovando meu desatino, disse-me que sua mãe gostava dessa antiga filosofia de caminhão: “Se a morte é um descanso, prefiro viver cansado”. Aproveitando a deixa, digo que concordo plenamente com a saudosa mãe de Rejane. Estou cansado, mas continuo feliz da vida, anotando frases vistas agora em muros, geralmente sobre polêmicas políticas. Infelizmente, arraigadas de ódios e preconceitos até com Jesus Cristo.
Será que acabou mesmo aquele bom humor do nosso passado para ficar hoje nas pichações da globalização sem criatividade e graça?
Mas, me digam, será que não é o tal Benedito, na casa de Mãe Joana?
Morada São Saruê – Nísia Floresta/RN.

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