“Você sabe com quem está falando?”

Fotografia: Acervo pessoal
Quem nunca ouviu esse antiquíssimo bordão? Pergunta autoritária, filha legítima de ‘dona’ prepotência com todo o ‘seu’ poder, ainda, infelizmente vigente. A população Negra e pobre já ouviu muito esse tipo de humilhação em suas vidas. Eu, confessadamente, já ouvi algumas vezes no passado. Até de antigos chefes de trabalho, num tempo que não se falava em direitos trabalhistas para reparar esses insultos prepotentes.
Sabe-se que isso vem desde os nossos sofridos e espoliados escravos, que nem sapatos podiam usar. O poder estava ostentado no bom sapato, no paletó, na gravata, na bengala e no chapéu masculino. Nas mulheres, nos vestidos longos e nas joias como adereços. Observo muito as vestimentas e adornos do nosso passado. A moda e o luxo diferenciando sempre os da ‘Casa Grande’ da maioria das ‘Senzalas’. Talvez, daí venha a racista expressão: ‘Pé rapado’ para os homens e ‘mocinhas de chitas’ para as mulheres pretas e pobres de então.
Percebo muito a arrogância de algumas pessoas ao me perguntarem com uma certa fina ironia:
– O que você vê de interessante em uma feira popular?
– E o senhor gosta de viajar de ônibus?
– Se alimenta em mercados interioranos?
A gente se faz de doido, mas sabe muito bem as verdadeiras intenções dos diabos. Estou velho feito macaco e não ponho a mão em cumbuca, muito menos sou preá para cair em quixós armados por esses e essas que me jogam perguntas de surpresas, quase que diariamente. Não adianta negar que eu sou de feira, com muito orgulho, e já vi de tudo em matéria de racismo nas minhas andanças, inclusive, de parte de amigos e amigas. Um deles, com anel de ‘doutor’ bem vistoso no dedo, quando chegava em bares, tratava muito mal os garçons e serviçais com humilhações. O mesmo só andou comigo uma vez.
Dizem que a verdadeira personalidade só é revelada nos ambientes simples, rodeado de pessoas com o poder menos aquisitivo do que a gente. Nos shoppings e nos hotéis cinco estrelas, dizem, todo mundo é santo e educado.
O saudoso mestre Ariano Suassuna contava uma história meio trágica e cômica, em que no auge da ditadura militar, seu carro havia batido em outro e o sujeito saíra do automóvel todo cheio de autoritarismo e, além de tudo, fardado. Era um militar de altas patentes e teria esbravejado em sua direção o costumeiro bordão aqui lembrado: “Sabe com quem o senhor está falando? Sou o Coronel fulano de tal do exército brasileiro, viu?”. Nesse dia, Ariano contou o seu desfecho às gargalhadas: “E eu sou Ariano Suassuna, um alto devoto do padrinho Cícero do Juazeiro do Norte!”. A prepotência não admite respostas e muito menos se esta vier com graça e deboche. Eles e elas, querem cabeça baixa e o centenário ‘Sim senhor!’
Vi uma cena constrangedora para uma pobre bibliotecária e, por que não dizer, para mim também. Eu estava em uma biblioteca pública e ao ver um senhor engravatado saí de suas pesquisas, foi tratado por uma amigável funcionária de senhor: “Muito obrigado pela visita. O senhor volte sempre!”. E este olhando rispidamente para a dita jovem, que não era branca como eu, lhe dispara em um supetão raivoso e cheio de arrogância o seguinte disparate: “Senhor não, eu sou doutor!”. Juro que na hora parei as pesquisas que estava fazendo tranquilamente e fui ao encontro da pobre mocinha, que caíra no choro dos humildes, sem saber dar uma resposta sequer aos prepotentes. Essa mocinha não sabia que às vezes a graça e o deboche desmoralizam os autoritários pra sempre.
Tive amizade com o genial sociólogo e escritor Clóvis Moura. Saudoso amigo com quem mantive encontros em Natal e São Paulo, além de correspondências. Muitos ensinamentos e roteiros bibliográficos para meu pouco conhecimento, num tempo sem internet e cheios de cartas em minha caixa postal. Ele era o maior estudioso brasileiro do negro. Sabia de memória suas histórias e sofrimentos. Autor de dezenas de obras sobre a nossa negritude, desde que eles aqui vieram forçados a mudar de nome e religião. Dizia-me Clóvis Moura que o racismo era uma praga perniciosa e estava arraigado em quase todo brasileiro. E que a luta para nós combate-lo devia ser uma constante e, principalmente, repassada aos nossos filhos e netos.
Sempre estou relendo Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro e Roberto Da Matta, entre outros. E quando me pedem indicação de um diário/memória, eu aconselho aos mais jovens a leitura da escritora Maria Carolina de Jesus, com seu livro verdade – Quarto de Despejo.
Ilustração: Rogério Marques
Hoje é dia da Consciência Negra. Dia da morte do bravo nordestino Zumbi dos Palmares. Chão/quilombo encharcado de sangue que eu conheci em 1995. Povo heroico como o de Canudos, de Antônio Conselheiro, que também conheci em 1993 e lá voltei outras vezes. Dois exemplos apenas que eu cito aqui hoje de lutas sangrentas entre brasileiros. De um lado os destemidos, os guerreiros da liberdade, e, de outro, os que chegavam armados e gritando com prepotência e autoritarismo racista o velho e miserável bordão: Sabem com quem estão falando!
20 de novembro de 2021 – Morada São Saruê, Nísia Floresta/RN.

Uma resposta

  1. Ilustre Escritor Gutemberg Costa, infelizmente a referida frase Imperativa, ainda é utilizada até os dias de hoje, em especial por alguns incompetentes e maus políticos, que por ironia do destino são eleitos para “defender os direitos do povo brasileiro”

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