Vital Farias: Arte e Política Entre Mundos

Disco Vinil – 1982 

Ontem fui pega de surpresa quando o Coletivo Foque me sugeriu escrever um texto sobre o compositor paraibano Vital Farias. Soube da sua partida naquele momento, já no final do dia. Quando a informação chegou veio a emoção, um filme e várias dúvidas.

Embora não o conhecesse pessoalmente, estive próxima dele pelas suas canções que me acompanharam desde a infância e me afastei quando vi que o compositor se rendeu ao bolsonarismo. No ano passado, cantei uma música dele no São João e senti o quanto, no paradoxo da  efemeridade/eternidade, podemos ser essa dança entre viver e morrer e esse jogo contraditório, em vida, oscilando por valores e sentimentos tão distintos.

O socialismo é a luta pela vida, a extrema direita é um caminho contrário mascarado pela busca por beleza e verdade, dois fundamentos da intolerância à diferença.Isso me fez pensar nas pessoas que amei que foram para este extremo e que simplesmente não pude deixar de amá-las, pessoas da minha família, convívio, quantos de nós não as temos e o quanto isso dói?

Em que medida a experiência da morte encerra ou inicia a potência de uma escolha política? Em que medida nós estamos mergulhados numa dupla consciência? Ou até múltipla? Conceito tão importante e trazido pelos estudos de decolonialidade.

Então eu fui buscar o compositor da minha infância, quando suas músicas atravessavam minha rotina através dos meus pais que o escutavam, das canções que me tocavam..O ritual da morte é algo que me faz sentir que talvez já viva no “entre mundos” através da arte, do processo de criação que nos suspende, entre a vida e a morte, entre subjetividade e objetividade, razão e emoção, mundo real e mundo onírico, simbólico, não ordinário…

Escrever sobre a vida deste compositor seria redundante frente a tantas homenagens,  notícias, análises…Escrever sobre a morte também é algo que ultrapassa a experiência.

Resolvi então, motivada pela trajetória deste artista, escrever no entre-mundos, neste lugar atravessado pelo desvio, ambivalente, acessado pela memória,  tão vago e tão profundo.

Fecho os olhos e a primeira canção que chega não é uma composição sua, é Caravana, composição marcante de Geraldo Azevedo e Alceu Valença com a presença forte de Vital Farias no projeto Cantoria, com show gravado ao vivo em janeiro de 1984 no Teatro Castro Alves, em Salvador – BA, por Vital Farias, Geraldo Azevedo, Elomar e Xangai, que deu origem aos álbuns Cantorias 01 e 02.  Eu tinha 11 anos.

Neste momento, sinto pelo que remete a todas as passagens…e como era presente a passagem em Caravana e com ela as águas que levam embora, para outros lugares, o fio condutor do mundo…”Corra não pare, não pense demais/Repare essas velas no cais/Que a vida é cigana/É caravana/É pedra de gelo ao sol/Degelou teus olhos tão sós/Num mar de água clara.” O impacto profundo destas palavras me faz sentir o mar de dentro, que chora água salgada e lembra o tanto de efemeridade que somos, que a vida “é pedra de gelo ao sol” e o quanto no calor da rotina estamos fixados na face concreta do  tempo e na ilusão de que não morreremos um dia. Caravana desmancha este sentido do tempo junto com as velas, o degelo, o mar…Caravana que desmancha certezas.

Era 10h e 40 min quando percebi que ainda estava em jejum, levantei para comer, tomar um café e, nesta pausa, lembrei da música “Pra você gostar de mim” de Vital Farias,  interpretada por Rita Benneditto. Aparentemente descontraída, mas que revela  a fragilidade do afeto no capitalismo, movido pelo interesse imediato e muitas vezes inconsciente e, de novo, a ambiguidade presente na ideia de “vou comprar dois automóveis, um pra mim outro pra ti” embora “isso não constrói nada, porque o que você precisa ninguém pode comprar” a canção revela a força deste impulso em “eu sou teimoso, eu vou comprar” num jogo que se repete numa letra curta, quase um mantra revelador de um conflito entre amor/consumismo/interesse/desapego.

O engajamento social, tão presente nas letras de suas músicas, se revelou nas tentativas pelo caminho político, Vital Farias se candidatou ao Senado pelo Psol, em 2006 e pelo PCdoB em 2010, garantiu muitos votos mas não foi eleito. Já no fim da sua vida, se alinhou ao bolsonarismo e passou a defender pautas conservadoras, o que gerou muito estranhamento, afastamento, críticas e dúvidas.

Escrever sobre ele neste momento me coloca num lugar de sentimentos contrários ao ver tão forte trajetória e engajamento cultural ter um desfecho assim e me remete a leituras e diálogos sobre características da decolonialidade, entre elas, uma das mais fortes é justamente essa dupla consciência que traz dentro de nós, latinos, a heterogeneidade carregada de diferenças genuínas, contradições e desigualdades.  Em que habita em nós, descendentes de caboclos, brancos, pretos, indígenas, imigrantes de vários lugares múltiplas referências de um passado que se atualiza nas memórias da colonização e violência como processo contínuo e na contra colonização como caminho para superar essas desigualdades, ao mesmo tempo, respeitando as diferenças.

Ter consciência da  dupla consciência talvez nos proteja de caminhos políticos extremos e nos traga uma compreensão de quem somos e para onde vamos e, apesar das decepções, seguirmos resistindo pelo direito à vida, à existência e todas as formas plurais de existir, porque um dia ela vai passar também, a vida, quando deixaremos novamente a nossa ambiguidade ao desaparecer em matéria e existir em memória, em sonho.

Antes de fechar o texto, senti a letra genuína de “Ai que saudade Docê”  e deixo aqui a saudade da minha infância e adolescência com as músicas de Vital Farias, ao entusiasmo da juventude e a necessidade de resistir pela alegria, paixão, esperança e, mesmo que a passagem chegue, porque vai chegar, sempre valerá a pena viver entusiasmado!

Vital Farias, vida manifestada no próprio nome, eternizada em suas canções e suas contradições, que nos impacta e nos faz refletir sobre  quem somos e onde estamos neste mar de emoções e lutas, entre busca pela vida e ameaça necropolítica, entre pulsão por viver e inevitável passagem. Refletir e sentir sobre como passamos rapidamente por este mundo até chegar o momento que muitos de nós chamam Morte…portal da memória…porta da saudade…


Rousi Flor de Caeté – Cantora, compositora, artista multilinguagem e pesquisadora.

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