No dia 28 de outubro do corrente ano, logo cedo, meu telefone foi invadido, no bom sentido, por mensagens postadas no WhatsApp e também por E-mail, dando conta da divulgação do gabarito preliminar da Prova Nacional Docente – PND, aplicada três dias antes para um universo de mais de um milhão de pessoas, conforme noticiado pela imprensa. Eram poetas, pesquisadores, imortais de academias, enfim uma expressiva quantidade de pessoas direta ou indiretamente ligadas à Literatura de Cordel. O entusiasmo era geral pelo fato de a prova da PND haver incluído questões envolvendo o Cordel (quesitos 57 a 59 e 66 a 69). Uma das mensagens, que incluía até mesmo cópia da prova com respectivas respostas arrematava com a epígrafe “cordel veio forte na PND”. A frase, apesar de sincera, infelizmente não ia além da mera exultação.
Li com atenção o “Texto para questões 57 a 59”, e foi o suficiente para compreender o desastre, a maneira como foi tratado nosso bom e velho cordel. Ei-lo:
O fiscal e a lagarta
Estava um dia uma lagarta
Debaixo de um pé de fumo
Quando levantou a vista
Viu um fiscal de consumo.
Disse a lagarta consigo:
Eu hoje me desarrumo
O fiscal perguntou logo
Inseto, o que estais roendo?
A lagarta perguntou-lhe
Fiscal, o que andas fazendo?
– Aperriando o comércio
Tomando tudo e comendo.
Disse o fiscal: para o imposto
O governo me nomeia
A lagarta respondeu-lhe
Você precisa é cadeia,
Para perder o costume
De andar roubando de meia.
Disse o fiscal: o governo
Não puderá se manter,
Sem procurar o imposto
De quem comprar e vender,
Artista e agricultor
Pagam por justo dever.
BARROS, L.G. Disponível em: https://rubi.casaruibarbosa.gov.br
O texto nominado cordel pelos organizadores do exame não pode ser tratado como tal, pelo menos em termos pedagógicos, posto que se encontra eivado de erros, ora formais, ora gramaticais. Comecemos pelo verso primeiro, apresentado com número superior a sete sílabas poéticas, quando todos os outros, sem exceção, estão em redondilha maior, o que é quase unanimidade no cordel. Sequenciando vêm os erros de gramática, com destaque para “aperriando” e “puderá”, para ficar apenas nesses dois.
Deixei por último o comentário sobre a estrutura, o que considerei mais grave, por não corresponder em nada ao texto original. Consultando o folheto original arquivado na Fundação Casa de Rui Barbosa, verifiquei claramente que a sátira de LEANDRO foi escrita e publicada em estrofes tradicionais (sextilhas), enquanto que na prova foi apresentado aos estudantes uma única estrofe de 24 versos, o que se conclui corresponder às primeiras 4 estrofes de O fiscal e a lagarta. E o que de tão grave contém esta observação?, há de perguntar o leitor e aluno submetido à prova. A resposta é simples: -Quem elaborou o quesito pouco ou nada entende de cordel, sendo esta a razão pela qual incorreu em erro ao transcrever o texto para o ambiente do exame. Seria o caso de anulação de todas as questões relacionadas com o assunto Cordel? Penso que sim, mas aí dependerá de uma discussão específica nas instâncias competentes.
Sigo no mesmo tom. Dirão alguns, em defesa dos responsáveis pelo quesito aqui comentado, que os erros, com exceção da disposição das estrofes (quatro transformadas em uma) não são tão graves, porque no original eles também aparecem. Verifiquei ao consultar o folheto que realmente isso é verdade. Aliás, erros de gramática e até de metrificação foram cometidos ao longo do tempo pelos cordelistas mais conhecidos e aclamados, como é o caso de Leandro Gomes de Barros, considerado o pai do cordel no Brasil. Isso porém em nada justifica o deslize cometido pelos organizadores da prova que, caso entendessem o mínimo da matéria, poderiam escolher entre a vasta obra do aplaudido autor, uma que fosse considerada impecável sobre todos os aspectos (e elas existem em grande número), ao passo que, fazendo como fizeram, apresentaram o cordel como uma literatura menor aos olhos de uma quantidade de pessoas (alunos), mais de um milhão, sem contar os que simplesmente leram pelos órgãos de imprensa ou que de qualquer outra forma a prova chegou às suas mãos.
O grave erro, repito, poderia ser cometido por qualquer pessoa ou órgão de imprensa, nunca porém pela PND. Conhecida como “ENEM dos professores”, a prova realizada pelo INEP destina-se a pessoas com formação em Licenciatura que queiram lecionar em escolas da rede pública. Recorro aqui, por entender pertinente, às palavras de Luiz Antonio de Assis Brasil quando afirma que pelo fato de um livro pertencer ao cânone, não significa que seja literalmente impecável (……………). Pede-se clemência aos professores do ensino médio e a alguns do ensino superior, aos quais recomendo especial cuidado no momento da mediação entre a obra e o aluno.
Pois bem. Se por um lado, a inclusão da Literatura de Cordel no exame da PND foi motivo de orgulho para os poetas cordelistas e aficionados em geral, deve, de outra banda, ser causa suficiente para protesto, considerando que a maneira como foi apresentado o gênero não corresponde à realidade, levando os leitores, professores e alunos a uma errada compreensão do cordel e da literatura popular em geral, considerada por alguns como poesia menor, talvez em grande medida por cometimentos desse jaez.
De minha parte concluo minha discordância, citando, por entender pertinente, trecho de uma canção gravada por Nelson Gonçalves, cuja letra protestava contra os então chamados compositores e cantores modernos. A letra de Seresta Moderna, para os que não conhecem termina assim: “A note termina, o samba tem fim/Amargurado por ser tratado assim.”
REFERÊNCIAS
BARROS, L. G. disponível em https://rubi.casaruibarbosa.gov.br
BRASIL, Luiz Antonio de Assis, jornal literário Rascunho, edição 306, página 25.
INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.
GONÇALVES, Nelson, Seresta Moderna (Adelino Moreira), disco RCA Victor, 1962.
*O autor é membro pesquisador da Academia Brasileira de Literatura de Cordel.






