por KALINA PAIVA // professora, escritora, pesquisadora
Ilustração: Kalina Paiva
Talvez a atual geração não se dê conta da cantora que está partindo. Do ano passado para cá, tivemos que nos despedir inexorável e inevitavelmente de Elza Soares (1930 – 2022), Gal Costa (1945 – 2022) e Rita Lee (1947 – 2023). Elas não iriam viver para sempre, embora suas sementes sejam notáveis na nova safra da MPB e, sobretudo, na luta das mulheres.
Elza, a mulher do fim do mundo com voz de trovão, bradou contra a violência de gênero. Com seus falsetes, Gal atarracou a Ditadura, reverberando contra os tempos de chumbo, na época em que Gil e Caetano encontravam-se exilados. Fechando o trio, Rita Lee, a voz feminina do rock mais censurada pelo AI-5, deslizou versos ácidos na guitarra envenenada.
As intérpretes Elza e Gal emprestaram suas vozes, dando vidas às letras, escolhidas cuidadosamente, à semelhança dos revolucionários com a chance de espalhar uma mensagem pelo vento aos ouvidos mais distraídos, embora elas não passassem despercebidas, pois carregavam uma missão: acordar pessoas de um sono alienante, por isso essa força estranha que canta e não pode parar.
Rita, por sua vez, mostrou-nos o mundo e a condição humana, sobretudo a feminina, de uma forma muito particular, fazendo questão de colocar isso em suas letras. Aliás, abriu caminho para uma geração de roqueiras – A baiana Pitty é um exemplo de sua influência -, mostrando que, para fazer rock, os culhões são só um detalhe. Para isso, só sendo mutante – algo no dna criativo que se perpetuou até um ano antes de sua morte, quando compôs Caos (2022), em parceria com Roberto de Carvalho e Beto Lee, sua última canção, gravada pelos Titãs, antes de as cortinas da sua vida se fecharem.
Do alto dos seus suspensos Jardins da Babilônia, ela entoava com a força da ironia e acidez que “Pegar fogo nunca foi atração de circo / Mas de qualquer maneira / Pode ser um caloroso espetáculo”. Rita era uma titã que brincava com fogo. Sua vida e sua trajetória artística são prova disso.
Na obra Rita Lee: uma autobiografia (2016), ela nos leva para 1976, ano em que estava grávida de Beto Lee, seu primeiro filho.
Na ocasião, o DEIC (Departamento Estadual de Investigações Criminais) tentou plantar drogas em sua casa, para acusá-la: “Me botaram sentada frente ao delegado e sobre a mesa dele uma pilha de cannabis já dixavadinha, pronta para enrolar. Erva de ótima qualidade, aliás. ‘A senhora tem algo a dizer sobre isso aqui que meus homens encontraram na sua residência?’. ‘Isso não é meu, seu delegado. Estou grávida e no momento não uso drogas. Nem Coca-Cola, pro senhor ter uma ideia. Eu vi quando seus homens colocaram isso na minha casa.” A artista recebeu ajuda de Elis Regina para saltar esta fogueira.
Além da detenção no início da gravidez, foi chamada mais de uma vez pelo órgão regulador da censura no Brasil. O motivo? Os versos menstruados de As duas faces de Eva (1981): “Mulher é um bicho esquisito, todo mês sangra”.https://www.youtube.com/watch?v=TlCtThSexx0 Se hoje você acha absurda a ideia de uma mulher ser chamada a prestar esclarecimentos à polícia por ter falado sobre algo natural, que faz parte dos processos de mudança na vida de uma mulher, é aqui que chamo a atenção da atual geração. A liberdade que temos hoje para postarmos conteúdo sobre os ciclos da mulher sem medo de ser presa por isso, devemos à Rita Lee – entre outras que igualmente lutaram por isso. Falo de Rita pelo fato de ter popularizado isso em forma de canção autoral. Sempre acreditei na força da música e a prova disso é essa mulher que escrevia versos como quem brinca com malabares de fogo, ou arremessa molotov.
A vigilância sobre a obra de Rita revela uma estrutura macro de uma vigilância sobre o comportamento feminino. Começa com a família. Depois, vem a igreja. E, numa escala maior, o Estado que domina os nossos corpos, definindo o que podemos ou não fazer – em geral, essas decisões ainda são tomadas por uma cúpula institucionalizada, formada majoritariamente por homens no Congresso e no Senado. Enquanto você fica aí pensando sobre quem ensinou a você, leitor(a), o que é coisa de menino e coisa de menina, vou voltar para o foco deste texto: a multi-instrumentista que nos deixou dia 08 de maio de 2023.
Ainda sobre as letras que ela fazia com “o que lhe dava na telha”, Banho de Espuma – a priori se chamaria Afrodite – também sofreu censura.
Nem vou partilhar aqui a justificativa do órgão regulador da censura. Prefiro comentar o teor da letra. É uma canção que fala sobre a relação sexual sem culpa. A intimidade de um casal é descrita de forma caliente, durante um banho de espuma. Nas entrelinhas da descrição desse momento privado, Rita – contemporânea da criação da pílula anticoncepcional e da Revolução Sexual – sinaliza um movimento contracultural acontecendo no mundo, o movimento hippie ao qual estava conectada, que pregava o amor livre, o pacifismo, a pauta ambiental. Esse amor livre está na simplicidade desse banho. Vale a pena ouvir a música que faz parte do Álbum Saúde (1981): https://www.youtube.com/watch?v=HieqZ6M4Jzc
Enquanto você ouve, aproveito para acrescentar: falar sobre o prazer feminino era (?) um tabu. Nesse ponto, a incendiária acabou influenciando comportamentos ao elevar a mulher como protagonista do prazer e não apenas aquela que satisfaz a outrem. A grande questão é que essa música, na época, foi de encontro ao controle do corpo feminino, na medida em que mostrou o ato sexual como algo que traz alegria e bem-estar, sinalizando que “Lá no reino de Afrodite / O amor passa dos limites / Quem quiser que se habilite”. Em suas memórias autobiográficas, ela admite: “… eu ligava o foda-se e entrava decidida no mundinho considerado masculino”. Melhor não provocar porque o choque estava no rosa à Lee.
Além da rebeldia desatada nos versos, a paulista inovou na qualidade técnica. Rick Bonadio, produtor musical, revela a marca registrada da multi-instrumentista, a saber, ela gravava a própria voz, várias vezes, em seguida sobrepondo-as em camadas, dando a impressão de que várias Ritas estavam numa confraria musical. Há várias assim, contudo convido você a ouvir Perto do Fogo, única que compôs com Cazuza sobre a qual comentarei adiante por vários motivos, fechando este texto com todos os afetos que há nesta composição: https://www.youtube.com/watch?v=XP7kodxwqT8
No livro Cazuza: só as mães são felizes, Lucinha Araújo, mãe do artista que intitula essas memórias, partilha o “gatilho poético” para a criação da composição Perto do Fogo. Cazuza, já debilitado pela doença, em 1989, contemplava as chamas da lareira e se lembrou dos cabelos vermelhos de Rita. Escreveu e mostrou para a amiga aquilo que – em minha liberdade poética – afirmo ser uma declaração de amor. Ele a desenhou em essência e simbolismos. Concentrou nos cabelos a liberdade e o poder. Mostrou a Rita em movimento como o umbigo de um furacão. Ao partilhar a letra com ela, ambos dialogaram e, lá do início dos anos 1990, imaginaram-se em 2020. O que estariam fazendo? Como estaria o mundo naquele futuro? (Tenho a certeza de que você já está ouvindo a música).
Como já mencionei, a letra começa com a alusão aos cabelos de Rita, perto do qual a voz poética deseja (em múltiplos sentidos) ficar: da mesma forma que os hippies contemplativos, ou mesmo como uma flor adornando aquele vermelho vibrante que tanto militou pela liberdade no coração da cidade. Consegue ver Cazuza nos cabelos de Rita? Emaranhado nas madeixas de fogo, era lá onde estava o poder de uma revolução em curso. O poeta, entretanto, encontrava-se impedido de circular livremente. É que a composição foi feita estando ele já fragilizado pela doença. Contudo, sua presença estaria corporificada na poesia.
O fogo, possuidor de um simbolismo espiritual, é um elemento muito forte nas composições de Rita e Cazuza sabia disso.
Nesta, especificamente, é feita alusão à Idade Média, automaticamente nos levando às bruxas, mesmo que a letra não mencione isso diretamente. De repente, a letra salta para um cenário pós-apocalíptico: “Quando tudo explodir”. Em seguida, a voz assegura: “Mas não vai explodir nada / Vão ficar os homens se olhando / Dizendo: ‘O momento está chegando’ / 2000, é ano 2000 / E não vai mudar nada” – Uma clara referência profética sobre o comportamento finissecular da humanidade, período no qual, normalmente, emergem seitas, aparecem ofertas de salvação às almas terrenas em face do suposto fim do mundo – eis a expectativa.
Em nosso caso, 2000 chegou trazendo consigo um medo coletivo chamado bug do milênio. Acreditem, os homens tiveram mais medo de que os computadores da época não entendessem a mudança e causassem pane geral nos sistemas e serviços – eis a realidade. Foi o mais próximo do apocalipse a que nós chegamos. E não é que ficamos todos olhando uns para as caras dos outros?
Há três referências de tempo na letra: o passado (Idade Média), o presente (no qual Rita e Cazuza especulam sobre o devir) e o futuro (que, segundo eles, repetirá o passado), pois “vai ser tudo igual”. Alguém duvida do quanto poetas são muitos bons com projeções no tempo e no espaço?
Permitam-me uma pequena digressão: estamos em 2023, o Congresso Nacional está buscando suspender alguns direitos conquistados pelas mulheres, através de alguns Projetos de Lei; há uma ascensão fundamentalista no País cuja bandeira é um retrocesso às liberdades individuais que quase destruiu a nossa jovem democracia.
Mas voltemos ao passado, exatamente ao dia 7 de julho de 1990. Enquanto a diva do rock gravava a canção flamejante em estúdio, Cazuza partia para bem longe do fogo, conforme ela revela em memórias: “Ele só pensava no futuro. Gravei a música no dia em que ele morreu, sem saber que ele tinha morrido.”
Diante de tudo partilhado aqui, reitero: Rita, assim como Elza e Gal, não é apenas cantora. Ela faz parte de uma geração que se despede de nós, levando na conta os louros das batalhas travadas, das conquistas humanas alcançadas com tamanha valentia. Honremos com as nossas memórias essa geração de mulheres que aprenderam com suas ancestrais, queimadas nas fogueiras da Idade Média, e se transformaram no próprio fogo, reinventando-se. Sejamos o fogo passado como tocha, de geração a geração, aceso com um querosene: o vermelho vivo da menstruação que flama por igualdade e respeito.
REFERÊNCIAS CONSULTADAS
ARAÚJO, Lucinha. Cazuza: só as mães são felizes. Depoimento à Regina Echeverria. São Paulo: Globo Livros, 2016.
LEE, Rita. Rita Lee: uma autobiografia. São Paulo: Globo Livros, 2016.
Nós utilizamos cookies para garantir que você tenha a melhor experiência em nosso site. Se você continua a usar este site, assumimos que você está satisfeito.Ok