Descriminalizou, e agora?

Charge: Nando Motta

No dia 25 de junho de 2024, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por 7 votos a 4, descriminalizar o porte de maconha para uso pessoal.

Na sessão do dia seguinte, 26 de junho, os ministros estabeleceram a quantidade de 40 gramas como o limite máximo para a distinção entre usuário e traficante, e definiram o limite de seis plantas fêmeas para o cultivo doméstico. Entretanto, mesmo descriminalizado, o porte de maconha segue proibido, e cabível de sanções administrativas.

Trata-se, portanto, considerando a realidade brasileira, de um avanço significativo, apesar de ainda longe do ideal, visto que não produz mudanças estruturais, mas que é fundamental para mitigar injustiças de raça e classe que ocorrem sistematicamente no judiciário brasileiro, uma vez que a Lei de Drogas (2006) não estipulou parâmetros claros, e ficou a critério da subjetividade do juiz a definição se a pessoa é apenas usuário ou traficante.

Por sua vez, em tese, se a decisão vai impedir que a pessoa tenha um registro em sua ficha criminal, ou que seja considerado reincidente, ainda existem brechas que precisam ser esclarecidas, como por exemplo, sobre a de apreensão de plantas flagradas sendo cultivadas domesticamente, e o peso do testemunho policial, que acaba tendo um impacto decisivo para legitimar condenações por tráfico de drogas.

Por sua vez, na prática, é apenas mais um passo fruto da luta antiproibicionista no país, que impulsiona na marra avanços a conta-gotas à revelia dos poderes estabelecidos. É importante enfatizar que tecnicamente a maconha já é legalizada no país, uma vez que o viés terapêutico já tem sido garantido, seja pela compra direta na farmácia, através de decisões judiciais, via associações canábicas e até, em alguns casos, via políticas de governos. Entretanto, na outra ponta, ainda haverá uma continuidade da “guerra às drogas” que promove um encarceramento em massa de jovens negros periféricos, transforma bairros inteiros em cenário de conflito armado, dificulta iniciativas de pesquisa com a planta e impossibilita o nascimento de uma indústria nacional e toda uma cadeia de produção relacionada à maconha.

Diante desta complexa conjuntura, é necessário que o avanço em relação à descriminalização seja encarado como um combustível a mais para os atores envolvidos na luta pela devolução da planta à sociedade, não podendo haver um efeito contrário, de comodismo. É necessário observar que até para se buscar discretas reparações jurídicas, não houve um consenso na Suprema Corte, longe disso. Ainda houveram posições que causaram perplexidade, como os votos desastrados dos ministros Dias Toffoli e Luiz Fux, além das posições reacionárias dos ministros Kassio Nunes Marques, André Mendonça e Cristiano Zanin.

Reforça esse entendimento da necessidade de avanço na mobilização a compreensão de que, se o STF parece o poder mais arejado em relação ao assunto, e mesmo assim ainda houve uma divisão, e toda uma dificuldade relacionada ao tema, que já tramitava desde 2015 na Suprema Corte, nos outros dois poderes a conjuntura parece ainda mais adversa, o que exige de fato, que as pessoas e organizações sigam em luta.

É importante observar que ao longo de seus cinco mandatos conquistados para a presidência, o Partido dos Trabalhadores (PT) pouco fez para um avanço real da pauta. Pelo contrário, a atual política de drogas, que já nasceu anacrônica, foi sancionada pelo presidente Lula no fim do seu primeiro mandato, em 2006. Trazendo para o presente, a indicação do ministro Cristiano Zanin também foi o desserviço à pauta, e a entrevista do dia 26 de junho para o portal UOL, onde ele diz que “o STF não tem que se meter em tudo” dá margem para péssimas interpretações.

Em relação ao Congresso Nacional, este é mais flagrante seu viés reacionário, que se materializa mais claramente na proposta da PEC das Drogas, que visa ir na contramão de toda a racionalidade e endurecer ainda mais a proposta de “guerra às drogas”, aumentando assim seu caráter encarcerador. Em Brasília, inclusive, já se espera uma “reação” parlamentar frente à decisão da Suprema Corte, e a sociedade não pode aceitar ficar na linha de tiro dessa disputa.

Ainda em relação ao Congresso Nacional, as discussões que tramitam, ou caminham para um endurecimento total da lei, ou quando mais oxigenadas, nem sequer cogitam a possibilidade do cultivo doméstico, nem garantem o funcionamento dos mais variados tipos de associações, que hoje exercem um papel fundamental para o acesso terapêutico. Em suma, o parlamento observa apenas os interesses do agro e das grandes indústrias farmacêuticas.

Em um país com sua pirâmide etária se invertendo dramaticamente, com pessoas cada vez mais dependentes de uma assistência de saúde mais eficaz, em um país assustado com o avanço da violência que parece ter na droga a sua centralidade, em um país que vê suas indústrias nacionais encolhendo vertiginosamente, o que se reflete na qualidade dos [poucos] empregos ofertados, se torna cada vez mais imperativo promover um debate sério e multifacetado sobre o assunto, que transborde a questão da liberdade individual – que é importante – e que dê musculatura para a construção de uma nova política de drogas que contemple, de fato, as necessidades do Brasil do século XXI.