
A memória faz parte de um tempo que já atravessamos, mas teimamos em torná-la viva e livre para continuar gritando em nossas mentes, dando continuidade à militância que nunca cessa.
Para reforçar a veracidade desse grito, o Coletivo Foque republica o bate-papo com Floriano Bezerra, uma das inumeráveis vítimas do golpe militar que tomou o país a partir de 1964. Essa prosa banhada de rebeldaria que ocorreu no dia 21 de maio de 2011 na memorável sede da Liga Artístico-Operária, no centro de Natal, logo após uma reunião da Associação Norte-rio-grandense de Anistiados. A memória do ex-deputado macauense traz à tona a sua luta de resistência à repressão comandada pelos generais.
Prisões, cassações, exílio, desaparecimentos, inquéritos e mais inquéritos. Esse foi o cenário de um passado recente que deixou profundas marcas na história do Brasil. Uma época de repressão contra homens e mulheres que lutavam por justiça social. Floriano fala dos seus ideais de liberdade e das torturas sofridas no cárcere, quando foi preso pelo exército, para quem era uma pedra no sapato da ditadura.
“No dia 1º de abril, eu estava aqui em Natal, no exercício do meu mandato de deputado estadual e da Federação dos Trabalhadores da Indústria do Estado do Rio Grande do Norte, quando pelas nove horas da manhã observei tropas nas ruas. Aí eu notei que a coisa estava diferente. A gente já vivia de atalaia. Então, me dirigi ao Grande Ponto, peguei o primeiro taxi que estava na frente, era de um cidadão de codinome Tetéu. E expliquei: quero alcançar a cidade de Macau, estamos com um golpe militar e eu tenho grande responsabilidade na minha terra para com os trabalhadores e a minha família. Aí o cara se inclinou para desviar do caminho, eu puxei a camisa dele e falei: rapaz, eu preciso alcançar minha família em Macau e os trabalhadores, você vai fazer uma coisa dessa? Depois eu soube que ele era polícia”.
Apesar do contratempo no taxi, o então deputado logo chega a Macau e vai para a Federação dos Trabalhadores da Indústria, da qual era presidente.
“Subi a tribuna e expliquei a situação para os trabalhadores, para que cada um ficasse atento, vigilante aos acontecimentos. À noite, peguei o jipe do meu pai, juntei alguns companheiros e fomos nos abrigar numa latada de casa velha. Lá ficamos nove dias. No dia seguinte à nossa chegada, um camponês passava na região e ouviu o rádio de pilha que levamos. Chegou assim e perguntou: o que vocês estão fazendo aqui? Expliquei a nossa missão ali, ele bateu no meu ombro e disse: Seu Floriano, eu vou trazer alimentação para o senhor e seus companheiros os dias que passar aqui, e fique tranquilo que não vou dizer a ninguém, eu conheço a sua história, as suas lutas, e até militamos nas ligas camponesas. Estava dada a senha”.
Ele conta que no oitavo dia já tinha caído o primeiro exército que comandou o golpe com Mourão Filho. Em seguida, caíram o quarto e o segundo exércitos. Restava o general Ladário no Rio Grande do Sul, que resistia ao golpe juntamente com Brizola. Até que Jango foi levado para o Uruguai, onde ficou exilado até morrer.
“Nós sabemos que Jango foi assassinado lá, disfarçadamente. Depois do oitavo dia no abrigo voltamos para casa, aí ficamos a mercê dos acontecimentos. Em seguida, recebi uma carta dizendo para eu me apresentar ao terceiro exército, em Natal. Antes de viajar, fui chamado à Capitania dos Portos pelo capitão Bruno, que comandava o golpe na região, para assinar a transferência de seis tarefas de trabalho da minha categoria profissional para uma associação que eles engendraram de última hora para demolir a minha categoria. Foi aí que eu levantei o punho cerrado e disse: capitão Bruno, não tem exército, não tem marinha, não tem aeronáutica que pegue nessa munheca para me fazer assinar essa transferência das tarefas de trabalho, disse, mesmo depois de ter passado na entrada entre metralhadoras”.
No dia 15 de abril de 1964, Floriano foi levado de avião direto para a base aérea. De lá, foi escoltado para o 16RI como preso político.
“Seis soldados, todos de baionetas, me levaram para uma sala onde estava o capitão Lacerda com a sua ira nazista. Pegaram uma cadeira, quando eu me sentei já fui levando chute, mãozada, telefone. Depois, trouxeram uma máquina, encheram minha perna de fios, aí haja choque elétrico. Só saí vivo dessa sessão de tortura. Quando tiraram os fios das minhas pernas me levaram para outra sala e botaram numa banheira seca, outro tipo de tortura, um dos muitos tipos de pau de arara que eles usavam. Era um caixão quadrado, de madeira de lei forte. Me amarraram de pés e mãos nas costas, aí o fôlego e o ânimo do cidadão começa a desaparecer. Vinha quase morto de uma sessão de tortura, aí entrava noutra. Fizeram isso não sei quantas vezes”.
Passados seis meses preso no quartel do 16RI, em Natal, Floriano foi levado para Fernando de Noronha, juntamente com Djalma Maranhão e Aldo Tinoco. Lá, já encontraram Luiz Maranhão Filho preso.
“O capitão apresentou um oficio ao Major e disse: esses são presos políticos da linha dura, se alguém tentar fugir, fuzila todos. Aí o tempo fechou. Ficamos presos em Fernando de Noronha até o dia 28 de outubro de 1964. Quando a gente chegou de Fernando de Noronha, liberado por Habeas Corpus, no Recife, tinha um comando militar de 48 homens para nos levar ao quartel do quarto exército. Botaram eu e Luiz Maranhão numa cela de 2 por 1, os nossos joelhos ficaram batendo um no outro, a gente quase sem poder se mover. Parece que pegaram todos os percevejos que tinha no quarto exército e jogaram naquela cela. Foi o maior suplício que vocês possam imaginar, com aqueles insetos nocivos que se alimentavam de sangue”.
Floriano Bezerra foi deputado estadual, líder de uma grande categoria de trabalhadores, organizador das ligas camponesas. Aí, acontece o golpe. Ele é preso, torturado, cassado.
“O golpe decorreu em 1964. Depois de passar por esses episódios que já falei, fico lá na minha terra procurando calma, melhorar um pouco de saúde para tentar emprego. Procurei muito, e nada. A convite de um amigo passei seis meses em Pendências. Nesse mesmo período, chegou um sujeito na região e comprou uma propriedade próxima. Era um espião americano“.
Depois de seis meses em Pendências, Floriano volta para Macau e compra uma drogaria.
“Em 1984, fechei as portas da drograria e a partir daí não trabalhei mais. Então, acumulei Previdência Social que banca essa minha capacidade de não baixar a cabeça para seu ninguém. Eu falo para civil, falo para militar, para quem precisar, de frente. Quando é preciso levantar o verbo da verdade, é a verdade”.
Mesmo depois de toda tortura física, psicológica, cassação política, Floriano sempre demonstrou disposição e a importância de se manter na luta por uma sociedade justa e igualitária.
“Em nenhum momento a minha ideologia passou. Ela continuou firme, franca na minha formação, eu sou um ideólogo intangível, irrecuperável, não tem golpe militar do mundo que faça eu mudar o rumo. E eu não acredito nesse sistema que está aí. Não foi por essa democracia que eu lutei. Lutei por uma democracia popular, do povo para o povo, de justiça, igualdade, liberdade na ordem econômica e social. Lutei por aquela democracia que está acontecendo na China, não há por que pensar em mudar, jamais“.
Em dezembro de 2009, Floriano lançou o livro “Minhas Tamataranas: Linhas Amarelas (Memórias)”, onde faz revelações da sua vida e da sua luta.
Agora, te vemos viajando sentado na locomotiva da memória, lembrando versos do poeta Mário Quintana: “Não é todo mundo que realiza os velhos sonhos da infância… Mas tua imagem, nosso amor, é agora menos dos olhos, mais do coração. Nossa saudade te sorri: não chora…”