1984: O Ano da Resistência – Diretas Já, Ocupação da Reitoria e o Crepúsculo da Ditadura no Brasil!

POR NANDO POETA – Sociólogo, cordelista, militante do PSTU e ex-integrante do Comando de Ocupação da Reitoria em 1984.

 

Em 1984, o Brasil era um caldeirão de emoções imerso na luta e na esperança de tempos melhores. Após duas décadas sob o jugo da ditadura iniciada em 1964, o país testemunhava os últimos suspiros desse regime, agora liderado pelo General João Batista de Oliveira Figueiredo.
O cenário político estava em ebulição com novos movimentos ganhando força. No final de 1983, a jovem Central Única dos Trabalhadores convocou manifestações em prol das eleições diretas para Presidente da República, preparando o terreno para um ano de intensa mobilização e determinação nas ruas.
O Carnaval de 1984 foi impregnado de fervor político. Enquanto marchinhas ecoavam, eu estava em Recife e Olinda, testemunhando a energia pulsante dos blocos. Em meio à festa, o espírito das Diretas já se infiltrava nos corações das massas como uma chama permanente.
Após o Carnaval, muitos imaginavam que as canções exigindo eleições diretas se dissipariam, mas não foi o caso. O calor humano e político da festa transbordou para as ruas, impulsionando os movimentos sociais a cada passo.
Em meu segundo ano na UFRN, estudando Ciências Sociais e com oito meses de militância na Convergência Socialista, uma corrente dentro do PT, testemunhei de perto o fervor das ruas. A CUT, incansável, mobilizava o povo, enquanto o PT, com suas bandeiras vibrantes, animava as marchas em prol das Diretas já. Queríamos o direito de eleger nosso presidente.
A Convergência Socialista erguia seus estandartes, suas faixas gigantes, clamando por Diretas já, recusando-se a aceitar o mero colégio eleitoral. Nas ruas, cantávamos a marchinha que se tornara o hino da nossa luta:
Tá com medo seu João
Chegou a hora da eleição (bis)
A gente pede
Ele não dar
Tudo bem, deixa pra lá
Como é que vai ficar
Em abril
O Brasil todo vai parar
Pra acabar com a ditadura militar.
Ansiávamos ardentemente pelo fim da ditadura militar. Nós, os jovens, não suportávamos mais viver sob um regime opressivo e repressivo. Almejávamos a liberdade com fervor. Nas universidades e escolas secundárias, encontrávamos o combustível que inflamava nossas lutas diárias. Não tolerávamos mais a presença de Figueiredo montado em seu cavalo, simbolizando o poder autoritário. Lutávamos pela sua queda, desejávamos vê-lo descer de seu pedestal de opressão. Nas ruas, nossa paixão pela liberdade ecoava em cada grito, em cada protesto, em cada passo rumo à democratização do país. Era a juventude em chamas, determinada a moldar seu próprio destino, a conquistar um futuro que fosse pavimentado pelas liberdades democráticas.
O ano acadêmico na UFRN desponta em março, abrindo-se com uma vibrante Feira de Ciências, Artes e Cultura, onde personagens como Celso Furtado e Cortez Pereira ecoam suas vozes debatendo sobre o Nordeste e a intricada questão da dívida externa, hoje conhecida como dívida pública. Este evento não apenas celebra o conhecimento, mas também serve como um catalisador para as fervorosas discussões que moldam nosso ambiente universitário.
Em meio a esse caldeirão de ideias e aspirações, muitos cursos da UFRN emergem em greve, clamando por melhorias substanciais. A demanda por mais professores e funcionários, eleições para chefias de departamento e uma busca por uma gestão mais democrática tornam-se as bandeiras flamejantes dessas manifestações. É o fervor das Diretas já que se mistura com as lutas por uma educação mais justa e inclusiva.
O curso de Fisioterapia luta incansavelmente por seu reconhecimento oficial pelo Conselho Federal de Educação, enfrentando obstáculos relacionados ao currículo e à estruturação do curso. Enquanto isso, a Psicologia almeja melhorias substanciais em sua infraestrutura, incluindo a contratação de mais docentes e a adequação de espaços para o ensino e a pesquisa. A Enfermagem clama por laboratórios bem equipados, salas de aula adequadas e oportunidades de estágio para seus alunos, juntamente com a contratação de mais profissionais para o corpo técnico.
O curso de Medicina, por sua vez, engaja-se em uma batalha pela melhoria do Hospital das Clínicas, buscando garantir instalações de ponta e recursos adequados para atender às necessidades de ensino e pesquisa.
Enquanto isso, no âmbito das Ciências Sociais, o Centro Acadêmico, renovado e fortalecido, levanta suas vozes em busca de mais professores, da construção de um banco de textos para facilitar o acesso dos alunos ao material de estudo e da promoção de uma gestão mais democrática no departamento. É uma luta por conhecimento, por inclusão e por uma voz mais ampla e participativa na construção do futuro da nossa sociedade. É a união da paixão acadêmica com o ímpeto político, moldando os corações e mentes da juventude universitária em direção a um amanhã mais promissor e justo.
No final de março, uma sombra desceu sobre a UFRN quando o Conselho Universitário (CONSUNI), órgão administrativo da universidade, aprovou a Portaria 62/84 do MEC, suspendendo o subsídio para o Restaurante Universitário (RU). O aumento abrupto nos preços das refeições foi como um golpe, especialmente para os estudantes que residiam nas Residências Universitárias. Porém, a indignação não ficou confinada aos corredores das moradias estudantis. Rapidamente, uma onda de solidariedade varreu a comunidade acadêmica, unindo todos os usuários do RU em uma luta comum.
A revolta dos estudantes tomou forma em protestos, sendo um dos mais marcantes o “bandejaço” realizado durante o almoço, quando o som dos talheres batendo nas bandejas ecoava como um grito coletivo de resistência. Essas manifestações não se limitaram apenas aos refeitórios. Com as entidades estudantis liderando a resistência, assembleias foram convocadas no Auditório da Reitoria, reunindo uma multidão considerada.
Na assembleia repleta de estudantes decidimos pela ocupação. O Reitor Genibaldo Barros compareceu e concederam-lhe uma fala de 5 minutos para se justificar diante da decisão do Consuni de aumentar os valores das refeições. Inicialmente, ensaiou-se uma vaia por parte dos presentes, porém, a condução da assembleia pediu aos estudantes que cessassem. O Reitor teve a oportunidade de se pronunciar, no entanto, suas explicações falharam em convencer qualquer pessoa presente. Diante da firmeza dos estudantes em sua decisão de ocupar a Reitoria, fica claro que as ações da administração da universidade estavam em total desacordo com os interesses e necessidades da comunidade acadêmica.
Após inúmeras reuniões e debates acalorados, os estudantes decidiram tomar uma medida mais drástica: a ocupação da Reitoria. Para liderar esse protesto, foi formado um Comando de Ocupação, representando uma ampla gama de grupos políticos que compunham o Movimento Estudantil. Mais do que isso, a ocupação da Reitoria foi um espaço inclusivo, aberto à participação de todos os estudantes que compartilhavam do desejo por justiça e igualdade. A Ocupação foi marcado para o dia seguinte.
Na manhã do dia 29 de março, numa quinta-feira, a energia era palpável nas Residências Universitárias I e II. Enquanto os primeiros raios de sol despontavam no horizonte, os estudantes se reuniam, preparados para o que estava por vir. Às 7 da manhã, uma corrente humana começou a se formar, unindo aqueles que não habitavam as residências. Faixas e cartazes foram meticulosamente elaborados, prontos para serem erguidos durante a passeata em direção à Reitoria. Com um espírito de união e determinação, partimos em marcha, passando pelo Restaurante Universitário e seguindo em direção ao nosso destino.
Por volta das 8h30, alcançamos a imponente Reitoria, onde nos posicionamos no amplo pátio interno do prédio. À medida que as vozes se erguiam em meio à multidão, a atmosfera se carregava de propósito e determinação. Diversas comissões foram formadas, cada uma desempenhando um papel crucial na organização do movimento. Um Comando da Reitoria, Comissões de Segurança, Mobilização e Cultura foram estabelecidos, enquanto o temor de infiltrações da polícia federal pairava no ar, recordando-nos dos desafios que enfrentávamos naquela época.
Após um amplo debate, os estudantes, munidos de faixas com frases irreverentes, avançaram pelas salas do prédio, especialmente ocupando os gabinetes do Reitor. Entre as frases marcantes estampadas nas faixas, destacavam-se: “Ester disse, Geni confirmou: que a gente passasse fome, que o FMI mandou”, uma crítica à Ministra da Educação Ester e ao Reitor Genibaldo, bem como ao saque imposto pelo Fundo Monetário Internacional em detrimento da população brasileira.
Outras mensagens criativas ecoavam nos corredores, como “Troque seu cachorro por um residente” e “Vim para que todos tenham fome: Portaria 62/84”, denunciando os impactos das políticas governamentais sobre a educação e a vida dos estudantes.
Com uma organização meticulosa, orientamos os estudantes presentes a ocuparem as salas administrativas da Reitoria. O Reitor Genibaldo Barros permanecia dentro de seu gabinete, alheio à movimentação que se desenrolava ao seu redor. O Comando Geral de Ocupação, acompanhado por uma turma determinada de estudantes, adentrou o gabinete, trazendo consigo colchões e faixas que logo foram dispostos pelo espaço. Naquele instante crucial, anunciou-se a ocupação, desafiando as tentativas de desestabilização.
O Reitor, com sua calma habitual, tentou dissuadir o movimento, qualificando-o como intempestivo. No entanto, nossas vozes ecoaram com uma resposta uníssona: “Ocupação, já!” Ignorando as palavras do Reitor, ocupamos o espaço, desafiando sua autoridade e reivindicando nosso direito à voz e à participação na gestão da universidade. Enquanto aquele momento se instalava, o Reitor se viu obrigado a se retirar, convocando uma reunião com sua equipe na FUNPEC.
Nessa reunião, o professor Jaime Mariz foi nomeado como o interlocutor oficial para negociar com os estudantes, sinalizando um primeiro passo rumo ao diálogo e à resolução dos impasses. Naquele instante histórico, os estudantes demonstraram sua capacidade de mobilização e sua determinação inabalável em lutar por seus direitos e por uma universidade mais justa e democrática.
A decisão do Reitor e sua equipe de suspender as aulas, efetivamente fechando as portas da universidade, levantou sérias preocupações entre os professores, que se manifestaram veementemente contra tal medida. Na realidade, ao optar por esse curso de ação, a Reitoria pareceu buscar não apenas desacelerar o ímpeto do movimento estudantil, mas também criar uma situação de isolamento para os estudantes envolvidos. Essa estratégia de aparentemente matar o movimento pelo cansaço revela uma desconexão preocupante entre a administração da universidade e a vontade e necessidades da comunidade acadêmica. Ao invés de buscar soluções construtivas e dialogar com os estudantes, a administração optou por medidas drásticas que apenas exacerbam as tensões e minam a confiança na instituição.
O Gabinete do Reitor foi rapidamente reconfigurado e rebatizado como Sala do Comando, ostentando agora uma placa com o novo título. Outras salas foram designadas como Salas dos Centros Acadêmicos, marcando assim nossa ocupação efetiva dos espaços administrativos. Durante os dias que se seguiram, implementamos uma extensa programação, repleta de atividades culturais e intelectuais. Houve momentos dedicados à leitura, à discussão de temas pertinentes, exibição de filmes, shows musicais e assembleias foram convocadas para deliberar sobre as decisões mais importantes. O Comando de Ocupação se reunia regularmente para traçar estratégias e garantir o funcionamento adequado da ocupação.
Até mesmo no domingo, uma missa foi celebrada, evidenciando a diversidade de atividades e o comprometimento dos estudantes com a manutenção de um ambiente coeso e solidário. Durante todo esse período, recebemos visitas de familiares e simpatizantes, que compartilhavam conosco sua solidariedade e apoio. A mídia local acompanhou de perto o desenrolar dos eventos, ampliando a visibilidade da nossa causa.
Conscientes da necessidade vital de garantir o sustento dos estudantes durante a ocupação, lançamos uma campanha de doações que ecoou por toda a comunidade universitária. Uma comissão de estudantes, imbuída de um senso de missão, empreendeu a nobre tarefa de visitar os Conjuntos Habitacionais Mirassol, Potilândia e Morro Branco, localizados nas cercanias da universidade. Nesses bairros, não apenas solicitamos alimentos e suprimentos, mas também estendemos a mão em um gesto de solidariedade e compaixão para assegurar o bem-estar de todos os ocupantes.
Estes momentos singulares foram marcados por uma extraordinária demonstração de organização e união, ecoando os valores mais nobres da nossa comunidade estudantil. Nossa ação não apenas fortaleceu os laços de solidariedade mútua, mas também reiterou nosso compromisso inabalável com a defesa de nossos direitos e com a causa maior da democratização do ensino. Nesses momentos de desafio, a alma estudantil brilhou com intensidade, mostrando sua garra e vontade inabalável de lutar por seus direitos. Unidos na adversidade, os estudantes se tornaram uma força extraordinária, tecendo os laços de solidariedade que fortaleceriam sua luta por um ensino público acessível e de qualidade.
Naquele momento, um movimento em cadeia estava se desdobrando em todas as universidades públicas do país. A convocação da União Nacional dos Estudantes para um Conselho de Entidades Estudantis visava discutir a crise que se abatia sobre o ensino superior. O presidente do DCE naquele momento, Cristian Vasconcelos, representou nossa universidade nesse importante encontro, onde já se tinha conhecimento de várias ocupações ocorrendo pelo Brasil afora. Diante da urgência da situação, a necessidade de uma Greve Geral dos Estudantes foi amplamente debatida e considerada.
Em meio ao reinado do ditador Figueiredo, um ataque federal se abateu sobre as universidades, com cortes de verbas que minaram os alicerces do ensino superior. O governo já não honrava a Emenda João Calmon, que destinava 13% da receita dos impostos federais para a educação, lançando as instituições de ensino em um estado de sucateamento. Nesse momento crítico, uma onda de luta fervilhou nas universidades, coincidindo com a batalha pelas Diretas já. Enquanto o mês de abril testemunhava grandes marchas, principalmente nas capitais do país, clamando por eleições diretas para presidente, o dia 25 de abril se avizinhava como o momento decisivo, a votação da Emenda Dante de Oliveira, que poderia abrir caminho para a convocação direta do povo nas eleições presidenciais.
Nessa turbulência política, as reitorias das universidades foram palco de resistência. O Movimento Estudantil da UFRN, um caldeirão de ideologias e paixões, viu-se em meio a uma disputa intensa. O Diretório Central dos Estudantes, sob a condução de uma coalizão entre o PC do B, representado pela corrente estudantil VIRAÇÃO, e um grupo político ligado ao PT (PRC/CLAREAR), refletia a diversidade de correntes que pulsavam na universidade, incluindo DS, CS, PCB, MR8, entre outras.
Nesse cenário efervescente, a ocupação das reitorias tornou-se uma estratégia unificadora adotada em todo o país. As demandas do Movimento Estudantil da UFRN eram claras e inabaláveis: a reposição das verbas cortadas no orçamento de 1984, a imediata aplicação da Emenda 24/83 do Senador João Calmon, que destinava recursos específicos para a educação, a revogação da portaria 62/84 que prejudicava os subsídios para os Restaurantes Universitários e, acima de tudo, a exigência por eleições diretas tanto para presidente quanto para os departamentos dos cursos e para a reitoria das universidades.
Nessa luta, os estudantes erguiam suas vozes com um viés poético, transformando a indignação em palavras que ecoavam como um hino de resistência, uma ode à esperança por um futuro mais justo e democrático. O estudante de Letras Adebal Ferreira, o poeta da Ocupação, lança seus versos:
Pelos os erros econômicos
Nós não podemos pagar.
Pois os impostos do povo
Não deixaram de contar.
Tá bom que se der um breque
Nas medidas do MEC
Pra coisa não piorar.
A crise persistia sem solução à vista, enquanto a Reitoria continuava sua estratégia de tentar isolar o movimento estudantil. Em resposta à suspensão das aulas, os estudantes intensificaram os esforços para convocar cada vez mais colegas a se juntarem à ocupação da Reitoria na UFRN. O chamado foi atendido com entusiasmo, resultando em uma adesão significativa de estudantes à ocupação.
O movimento estudantil despertou o interesse de toda a sociedade, gerando sensibilização entre os professores, que iniciaram um processo de sugestões em busca de uma solução. Uma das propostas resultou na criação de uma Comissão de Alto Nível, composta por representantes da política, da igreja e da intelectualidade. O objetivo dessa comissão era restabelecer o diálogo e avançar na busca por uma resolução para a crise.
Além disso, outra comissão, formada a partir do movimento docente, também se organizou para contribuir na busca por uma saída para o impasse.
Entretanto, a sociedade se dividiu diante do movimento estudantil. Um setor claramente ligado ao golpe de 64 expressava sua desaprovação, lançando notas em jornais e rotulando os estudantes como baderneiros, enquanto clamava por uma postura mais firme da Reitoria para enfrentar o que consideravam como uma ameaça. Essas vozes também faziam referência aos 20 anos do golpe militar, que coincidia exatamente com o período da ocupação da Reitoria em 31 de março de 1984.
Apesar das críticas e divisões na sociedade, o movimento estudantil encontrava conforto na atmosfera nacional de luta pelas Diretas, já. O desejo por mudança iminente permeava o movimento, alimentando sua determinação e fortalecendo sua causa.
O comportamento da Reitoria durante o movimento estudantil foi marcado por uma série de medidas voltadas para isolar e deslegitimar o movimento. Primeiramente, suspendeu as aulas, privando os estudantes do direito à educação e dificultando a organização coletiva. Além disso, cancelou um concurso previsto para funcionários, prejudicando não apenas os estudantes, mas também os profissionais que buscavam oportunidades de emprego na universidade.
A ameaça de suspender as atividades dos hospitais universitários revelou uma falta de consideração com a saúde e o bem-estar da comunidade acadêmica e da população atendida por essas instituições. Por sua vez, a menção à suspensão das atividades do Restaurante Universitário, apesar da crise, demonstrou uma abordagem desumana diante das necessidades básicas dos estudantes.
É preocupante observar que um grupo de professores do curso de direito tenha orientado a Reitoria a adotar uma postura de criminalização da luta dos estudantes. A proposta de incluir os membros do Comando da Ocupação nos artigos do Código Penal e na Lei de Segurança Nacional revela uma tentativa de silenciar a voz dos estudantes e criminalizar o legítimo exercício do direito de manifestação.
Diante desse contexto, a decisão da Reitoria de entrar com uma Ação de Reintegração de Posse contra os ocupantes da Reitoria mostra uma escalada na tentativa de reprimir e desarticular o movimento estudantil. Essas ações são preocupantes não apenas pela violação dos direitos dos estudantes, mas também pelo precedente que estabelecem em relação à liberdade de expressão e ao direito de protesto dentro do ambiente acadêmico.
À medida que os dias se arrastavam, a incerteza pairava sobre a resolução do impasse. De repente, a Reitoria, representada pelo próprio Reitor, anunciou uma medida drástica: a judicialização do movimento estudantil, com a intenção de responsabilizar os membros do Comando de Ocupação. E assim o fizeram.
O pró-reitor estudantil, Jaime Mariz, encontrou uma brecha ao se deparar com um documento elaborado pelo Comando de Ocupação, o qual detalhava os motivos da ocupação e contava com a assinatura de alguns de seus membros, incluindo Hugo Manso, Hermínio Pereira, Fernando Wanderley, Manoel Joseane, José Evangelista, Fernando Antonio, Edmilson Lopes e Soraya Godeiro. Utilizando esse documento como base, a Reitoria deu entrada em uma Ação de Reintegração de Posse contra o Comando Geral de Ocupação da Reitoria.
Esse movimento surpreendente do Reitor, que inicialmente afirmava buscar uma resolução dentro dos princípios democráticos, acabou por transformar a luta estudantil em uma batalha judicial. Essa mudança de estratégia evidenciou uma contradição flagrante entre as palavras e as ações da administração universitária, minando ainda mais a confiança dos estudantes na busca por uma solução justa e democrática para a crise em curso.
Uma intensa campanha foi lançada na cidade, difundindo a ideia de que o movimento estudantil estava gerando um problema de ordem social, e os ataques não tardaram a surgir de diversos lados. No entanto, a justeza das reivindicações dos estudantes, que buscavam um direito básico, conseguiu estabelecer um diálogo com a comunidade e sensibilizar o apoio da população ao movimento.
Após uma série extensa de debates entre a representação da Administração da UFRN e uma Comissão de alto nível, composta por representantes da sociedade civil, docentes e estudantes, que se estenderam até as primeiras horas do dia 4 de abril, emergiu uma proposta de acordo. Durante essas negociações, os estudantes realizaram uma Assembleia ainda na madrugada dentro da Ocupação, chegando à conclusão de que o momento para encerrar a OCUPAÇÃO DA REITORIA havia sido alcançado.
Na manhã seguinte, os estudantes começaram a ocupar o ambiente da reitoria, proporcionando uma oportunidade para informar sobre as negociações realizadas durante a noite. Apesar da decisão tomada na assembleia da madrugada, o Comando reabriu a discussão com os estudantes que chegaram pela manhã. Os presentes na manhã referendaram a decisão anterior de desocupação da reitoria como o próximo passo.
Em seguida, optou-se por uma marcha em direção ao Centro de Convivência, onde a concentração de estudantes era expressiva. A ação precisava ser realizada antes das 9 horas, horário estabelecido como limite pela Justiça Federal para uma possível intervenção coercitiva, caso não houvesse desocupação voluntária.
Com a mobilização e resistência coletiva, obtivemos uma vitória parcial significativa ao adiar os planos da reitoria de aumentar os custos das refeições no Restaurante Universitário. Esta batalha não apenas expôs a hipocrisia da retórica democrática da administração universitária, mas também destacou sua postura prepotente, autoritária e coercitiva como meios para suprimir uma causa legítima em prol da qualidade do ensino.
Nossa luta persistiu, exigindo não apenas a imediata cessação do inquérito policial em andamento, mas também a defesa irrestrita do ensino público e gratuito. Além disso, garantimos a volta às aulas sem nenhuma punição legal ao movimento.
Alcançamos o congelamento dos preços por 45 dias e a criação de uma Comissão paritária para estudar uma proposta de manutenção dos atuais preços do RU, visando pleitear suplementação de verbas junto ao MEC.
No entanto, é imperativo que avancemos para um sistema de eleições diretas, garantindo a participação democrática desde a escolha do reitor até o mais alto cargo da universidade. Essas demandas não são apenas urgentes, mas essenciais para preservar os princípios democráticos e a qualidade do ensino superior.
Em meio à irreverência, mas com uma determinação inabalável em lutar por seus direitos, a ocupação prosseguiu por sete dias. Com os estudantes ocupando o coração da Reitoria, toda a universidade viu-se paralisada, com as aulas suspensas em todos os cursos. A voz dos estudantes ecoava nos corredores, reivindicando uma educação digna e justa, e inspirando outros movimentos a se levantarem em defesa dos direitos estudantis e da democratização do ensino.
A experiência vivenciada durante essa luta não foi em vão; na verdade, foi uma aula prática que transcendeu os limites da sala de aula. Enquanto estávamos engajados nessa batalha, estávamos também absorvendo lições fundamentais sobre justiça e igualdade em uma sociedade livre de opressão. Naquele momento, estávamos plantando as sementes para a construção de uma comunidade baseada em valores democráticos e liberdade.
No entanto, anos mais tarde, descobrimos que nossos passos estavam sendo minuciosamente registrados pelo regime militar. Cada movimento realizado durante a Ocupação da Reitoria foi meticulosamente documentado nos relatórios dos órgãos de inteligência do governo ditatorial. Fotografias, discursos, até mesmo documentos do Comando de Ocupação entregues à Administração da UFRN foram cuidadosamente arquivados nos dossiês do regime opressor.
Essa revelação amplifica ainda mais a importância de nossa luta. Não apenas estávamos desafiando a administração universitária em busca de melhorias concretas, mas também estávamos desafiando um sistema autoritário que tentava silenciar nossas vozes e reprimir nossos ideais democráticos. Essa consciência histórica fortalece nossa determinação em continuar lutando por uma sociedade verdadeiramente livre e justa, onde os direitos individuais e coletivos sejam respeitados e protegidos.
Encerro estas linhas com o relato contido em minha ficha individual da Assessoria de Segurança e Informações da UFRN, gentilmente cedida pelo Ministério da Justiça para instruir o processo de anistia dos perseguidos políticos da ditadura. Este documento não é apenas um registro burocrático; é um testemunho do fogo ardente que ardeu em nossos corações, da paixão que nos impulsionou a lutar contra a opressão e a injustiça.
ANTECEDENTES:
Participação ativa nos movimentos contestatórios promovidos pelos discentes na Universidade;
Frequentador assíduo das reuniões e assembleias do Diretório Central dos Estudantes (DCE);
Fez parte do Comando Geral de Ocupação da Reitoria, mobilizações estudantis ocorrida nos dias 29 de março a 4 de abril de 1984. Relativa a crise do Restaurante Universitário, sendo inclusive citado na Ação de Reintegração de Posse interposto pela universidade na Justiça Federal contra os estudantes invasores;
Indiciado em Inquérito Policial Departamento da Policia Federal por envolvimento no referido processo.
Minha foto usada nas fichas dos organismos de repressão.
Cada palavra gravada nessas páginas carrega consigo as marcas de uma batalha travada com coragem e determinação. É a narrativa de sonhos não silenciados, de ideais não traídos, de vozes não caladas. É a prova viva de que, mesmo diante das sombras mais densas da tirania, a luz da esperança e da resistência continua a brilhar.
Que este relato, rico em memórias e emoções, transcenda seu papel meramente histórico e se torne um poderoso lembrete da força da solidariedade, da resiliência e da busca pela liberdade. Que possamos prestar homenagem àqueles que foram vítimas de assassinato e perseguição, enquanto continuamos a lutar por um mundo onde a justiça e a dignidade triunfem sobre a opressão e o medo.
Hoje, ao relembrarmos os 60 anos do Golpe, este relato ressoa como um apelo urgente para que revelemos publicamente todas as experiências vividas durante os períodos de ditadura civil, militar e empresarial. A Emenda Dante de Oliveira, que foi derrotada no Congresso Nacional em 25 de abril de 1984, pode não ter sido aprovada, mas as mobilizações em prol das Diretas Já serviram como o combustível essencial para acelerar o colapso da moribunda ditadura naquele ano.
É crucial que compartilhemos nossas narrativas com fervor e determinação, levantando nossa voz contra qualquer tentativa de normalizar as práticas cruéis que marcaram os anos de repressão e autoritarismo. Somente ao enfrentarmos corajosamente o passado e compartilharmos nossas experiências com o mundo, podemos garantir que as lições dolorosas da história não sejam esquecidas e que a luta pela justiça e pela liberdade continue acesa em nossos corações e mentes.
Que nossas memórias sejam como labaredas vigorosas, iluminando os recantos mais sombrios da história, e que nossa batalha pela verdade e pela justiça seja tão ardente quanto o amor pela liberdade que nos impulsionou durante os dias sombrios da ditadura. Somente ao enfrentarmos corajosamente o passado podemos construir um futuro onde os horrores do autoritarismo jamais sejam tolerados novamente.
É por isso que consideramos completamente equivocada a postura do Presidente Lula em desprezar a necessidade da apuração do passado de terror do regime militar. Reafirmamos a necessidade premente de abrir a caixa de Pandora do regime ditatorial, para finalmente descobrirmos a verdade sobre o destino de nossos irmãos de luta, muitos dos quais permanecem desaparecidos até os dias de hoje.
Que a lembrança do Golpe não se restrinja apenas à rememoração, mas seja um chamado à ação, uma oportunidade ímpar para renovar nosso compromisso com a defesa das liberdades democráticas e dos direitos humanos. Que jamais releguemos ao esquecimento o preço pago por aqueles que audaciosamente sonharam com um mundo mais justo e humano.
Neste momento de reflexão, devemos reafirmar nossa determinação em lutar incansavelmente, com toda a nossa paixão e fervor, por um futuro onde a liberdade, a igualdade e a dignidade sejam garantidas a todos. Que a memória das injustiças sofridas durante os anos sombrios da ditadura nos inspire a seguir adiante, mantendo sempre acesa a chama da esperança pela construção de uma sociedade verdadeiramente socialista.

 


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
1.Estudantes ocupam a Reitoria. In: Diário de Natal. Natal, 1984.
2.Campus em pé de guerra com invasão pacífica. In: Tribuna do Norte. Natal, 1984.
3.UFRN em crise. E o Culpado. In: Dois Pontos. Natal, 1984.

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