Romildo de Alexandria

por Esso Alencar // cantor/compositor

Romildo Soares (d), por M. Lazzara

Hoje, há um ano, perdíamos de vez Romildo Soares.
Digo de vez porque sua morte já era anunciada, basicamente uma questão de tempo. E muitos de nós vimos, gradativamente, seu lento desaparecer, pouco a pouco, a cada tarde, a cada noite, tarde da noite, surgindo como um vulto primeiro e depois apenas um molambo esvoaçando.

Eu o conheci em meados dos anos 1990, quando ele estava em plena forma. E me lembro bem desse dia, na Praça Vermelha, quando ele me relatou de uma viagem sua ao Sudeste, e vinha inclusive trazendo novidades, destacando o aparecimento de novos artistas à época em nossa conversa inicial e promissora de uma forte amizade.
Foi ele, em sua generosidade, que me presenteou com um livro raro, de Torquato Neto, e que acabou por me inspirar e me orientar a escrever a coluna A Cena. Cheguei a ir ao seu apartamento para discutirmos projetos, mas nossas rotas eram então um tanto distintas, pois àquela altura ele transitava bem por ambientes que estavam fora do meu círculo social, mais periférico, mais anarquista.
Depois, já nos primeiros anos do século seguinte, eis que nos reencontramos em Sampa, para onde ele havia mudado algum tempo antes. Seu envolvimento com o baixo Bixiga, que aliás à época estava em franca decadência, me proporcionou rondas noturnas pelos bares e casas de shows que ainda resistiam por lá, nos reaproximando para uma nova etapa de nosso convívio. Ele havia feito muitas amizades nesse trecho da capital paulista e desfrutava de certos afetos e alguns afagos que chegaram ao ápice quando da gravação de sua parceria com Zé de Riba, do Maranhão, na voz de Simone.
A canção se chama ‘www.sem’ e ganhou uma versão também de Khrystal. Nela está expresso um pouco do mundo ‘sem amor, sem ninguém, sem manhã, sem cama, sem grana’ e sem mais uma porção de necessidades que o artista, especialmente o compositor brasileiro, experimenta em sua rota invariavelmente dramática.
Mais tarde Romildo voltou à taba, provavelmente por haverem se esgotado suas condições de permanência em São Paulo. Ou mesmo pelo simples desejo de voltar às suas origens, onde havia nascido sua paixão pela música e onde a ela se entregou com toda intensidade.
Mesmo antes de se ir, ele já era reconhecido como um dos maiores compositores entre nós, um letrista de mão cheia, com um bom domínio da técnica inerente ao ofício de escrever canções, que é raro. Suas parcerias, algumas com Lupe Albano e outras com Yrahn Barreto, considero obras primas.
No entanto, nos últimos anos, sem horizontes mais amplos para desenvolver e sobreviver de sua arte, sem perspectivas diante das encruzilhadas no caminho, em determinado momento ele resolveu chutar o balde e mergulhou no nevoeiro profundo de onde o destino não permitiu mais que saísse. Sua figura foi se desintegrando, maltrapilha, fotografado muitas vezes em situação de rua, vendendo versos no beco da lama, recitando trocadilhos em troca de algum vintém, definhando transtornado sem rumo, até ser encontrado inerme na calçada da avenida Rio Branco.
A morte de Romildo e toda a sua degradação visível, proposital e consciente foi, para mim, um ato político. Sua visão era consciente quando tomou a decisão de se deixar levar pela correnteza, se entregar aos vícios e parar de cumprir com o protocolo social que se espera dos sujeitos ditos normais.
Esse companheiro valoroso esteve integrado em diversos momentos às lutas enfrentadas pelas categorias artísticas, vestiu a camisa da Rede Potiguar de Música, desde o começo, foi perspicaz em suas críticas e sem meias palavras para dizer o que quis, quando quis e como quis.
Assim viveu esse amigo amado, abalado em suas dores, exilado nas suas próprias sombras, numa peleja perdida que teve o seu penúltimo ato apenas alguns dias antes, no evento (foto) em prol de um dos seus maiores parceiros, Pedro Mendes, em Pium, onde ele já pedia aos que encontrava um abraço de despedida.

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