O nome dela é Gal

por NILO EMERENCIANO // arquiteto e escritor

Está em cartaz – era assim que nós dizíamos antes dos streamings – o filme sobre Gal Costa (Meu nome é Gal), que tão recentemente nos deixou.

O cinema brasileiro nos últimos anos meio que se especializou em biografias de pessoas que de alguma forma alcançaram notoriedade. Carlos Marighella (Marighella, 2021), Mussum (Mussum, o Filmis, 2023), Zezé de Camargo e Luciano (Dois Filhos de Francisco, 2005), Cazuza (O Tempo Não Para, 2004), Bozo, o verdadeiro, não o genérico (Bingo, O Rei das Manhãs, 2017), Elis Regina (Elis, 2016). Até Luís Inácio já foi alvo de um filme meio fajuto (Lula, O Filho do Brasil, 2009).
Biografias sempre deixam a desejar. Gostei muito do filme Elvis (2022), muito mais do que o que contou a vida de Freddie Mercury (Bohemian Rhapsody, 2018). Talvez pelo fascínio e carisma que o rei do rock ainda hoje transmite. Elton Jonh (Rocketman, 2019) também me agradou. Mas Ray Charles (Ray, 2004), por exemplo, não teve a mesma sorte apesar do excelente desempenho do ator, Jamie Fox. Por falar nisso, vem por aí outro filme sobre o Elvis, desta vez abordando seu relacionamento com Priscilla Presley.
Não esperemos dos filmes biográficos uma narrativa correta, apegada aos fatos, ainda mais quando os biografados são artistas. Os roteiristas precisam adicionar pitadinhas de imaginação para tornar o filme comercialmente aceitável, além de precisar compactar em duas horas a história de uma vida inteira. Em Cazuza, por exemplo, omite-se o seu relacionamento com Ney Mato Grosso, talvez por caretice, ou para evitar possíveis processos. E as falas do ator são entupidas de palavrões, às vezes desnecessários. Sim, sei que Cazuza devia falar assim, mas precisava colocá-lo mandando a mãe tomar em algum lugar? A vida de Édith Piaf, tão cheia de dramaticidades, não cabe inteirinha em um filme, mas Piaf – Hino ao Amor (2007), cumpre bem o seu papel.
Marighela, interpretado por Seu Jorge, era uma história que precisava ser contada e Wagner Moura, acredito, conseguiu seu objetivo. E, imaginem, fui ver Dois Filhos de Francisco com o nariz enviesado e saí, se não maravilhado, pelo menos agradavelmente surpreso.
Há alguns anos as cinebiografias eram de notórios foras da lei. Lampião, Rei do Cangaço, celerado que alcançou fama internacional, presente em espetáculos, feiras, cordel, dramatizações, teve várias representações. As aventuras de bandidos urbanos, mocinhas tímidas se comparados aos narcotraficantes de hoje, também foram levadas às telas. Talvez o mais conhecido deles tenha sido Lucio Flávio, autor da frase que deveria ser obvia, bandido é bandido, polícia é polícia. Mineirinho também teve a vida e a morte trágica – treze tiros – filmada em 1967, com o bônus de ter Leila Diniz no elenco (Mineirinho, Vivo ou Morto). A morte de Mineirinho provocou o belíssimo texto de Clarice Lispector, impactada pela violência da repressão policial: “Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.” Fico imaginando o que não escreveria Lispector frente às chacinas de hoje, muitíssimas vezes mais violentas. Tião Medonho, protagonista do assalto ao trem pagador, rendeu um filme excelente, um dos mais cultuados da nossa filmografia, com um elenco onde pontificam Grande Otelo, Jorge Doria e Reginaldo Farias.
Mas duas coisas me chamam a atenção no filme sobre a Gal. Uma delas é a brevidade com que se fez o filme, afinal, a doce bárbara morreu em novembro de 2022, e menos de um ano passado já se filmou e lançou esse trabalho. Será que isso inaugura uma tendência? A segunda é o óbvio: a beleza daqueles anos, em que, por paradoxal que pareça, sob tanta repressão (afinal estávamos sob a dureza do golpe militar), se vivia um espírito libertário, manifestado nas roupas, músicas, atitudes, poesia, em franco desafio aos gorilas da repressão. E ainda há mais, a postura antenada com o que havia de melhor no pensamento progressista que rolava nos becos e esquinas das cidades. Jovens, não se enganem: a liberdade que vocês desfrutam hoje teve suas raízes lançadas naqueles anos lindos.
Nesse meio a Vaca Profana se move. A sua voz soa como um estandarte, um hino, uma convocação. Gil canta uma canção que diz que quem não dormiu de sleeping bag nem sequer sonhou. Pois é. Quem não viu a Gal, quem não comprou seus discos, nem se maravilhou com a voz cristalina e absolutamente afinada, cantando Baby, Objeto Não Identificado, Vapor Barato, não sonhou, nem viveu uma era, acreditem.
Eu estava em falta com Maria das Graças. Sua morte me atordoou. O filme mexeu com meus arquivos emocionais, clicou em pastas ocultas, meio esquecidas. Escrevo isso para me redimir. Gal, querida, você faz parte da minha e da vida de tanta gente. Vi você várias vezes, a mais marcante foi no palco do Teatro Alberto Maranhão. Maravilhosa, divina, mais que demais. Vou terminar este texto como se fora uma carta: Baby Gal, um abraço carinhoso do admirador de sempre.
Natal, 2023

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