Revolta do Busão: Dez Anos

 

por EDILSON FREIRE MACIEL

 

 

Se não posso dobrar os poderes mais altos,
Agitarei os infernos.
(Eneida – Virgílio)
Um decênio da Revolta do Busão, Movimento Estudantil de expressiva presença universitária, com diversos matizes políticos na seara progressista e democrático popular, cuja experiência advinda do “Fora Micarla” e contra o aumento da tarifa dos transportes de R$ 2,00 para R$ 2,20, culmina em junho de 2012, com a ocupação da Câmara.
O movimento saiu fortalecido com esses embates. Em setembro de 2012 é criada a Revolta do Busão, que inicia a sua luta com um protesto contra o aumento das tarifas de ônibus, de R$ 2,20 para R$ 2,40 não, restringindo-se apenas, em baixar as tarifas, mas com a visão sistêmica sobre o conceito de mobilidade urbana e com novos métodos de organização política. (Fonte, Uol-2012).
Essa nova organização política, horizontal, democrática e pela base, provocou uma ruptura com a hegemonia ortodoxa partidária, em face da nova força insurgente anarco-libertária, que trouxe um equilíbrio tácito para a nova configuração política, não mais atrelada exclusivamente às decisões dos partidos.
Tal política apesar da discussão acirrada com a ortodoxia partidária, numa relação tensa entre os protagonistas políticos, consegue lutar por uma mesma pauta, a dos transportes, numa frente não antagônica, que transfere as contradições ocorridas nas assembleias estudantis universitárias para as manifestações de rua.
A formação desse novo paradigma atropelou o controle político dos partidos através da participação da juventude periférica nas manifestações, devido a sua ação autônoma no incêndio aos ônibus, depredação de bancos e órgãos públicos, até mesmo igrejas. Portanto, criminalizados pela repressão, pelos Partidos e pela imprensa hegemônica e caracterizados de vândalos e infiltrados, pois, tais atos atentavam contra o patrimônio e comprometiam a imagem dos partidos, que almejavam ocupar uma cadeira no parlamento.
As manifestações mesmo pacificas, foram seguidas por uma brutal e fascistóide repressão (qual a ocorrida em 15 de maio de 2013), a cada vez que se massificava e recebia a adesão de parcela da juventude precarizada, que não via perspectiva de mudança através dos partidos, mas sim, de continuísmo de um sistema fascista, corrupto e opressor que a esmaga cotidianamente com todas as privações econômicas, ainda por cima, com a violência policial.
A subjetividade da nova geração universitária da Revolta do Busão foi construída através das lutas estudantis, não só contra o aumento da tarifa, mas também contra ela. Essa luta teve início com o MPL (Movimento Passe Livre), que teve a sua fundação em
2005 no Fórum Mundial Social em Porto Alegre/RS, tendo em 2006 realizado o seu 3º Encontro Nacional com a participação de mais de 10 cidades brasileiras, na Escola Florestan Fernandes, do MST (Movimento dos Sem Terra).
A pauta dos transportes defendida por essa nova geração estava associada à Macro Política, fundamentada nas ideias de Henri Lefebvre, sobre o direito à cidade, de David Harvey, sobre o urbanismo social, e por fim o direito à cidade através da poética urbanista do filósofo Michel Bachelard, teorias consideradas utópicas para a realidade política e social brasileira na implementação de uma política pública da tarifa zero.
O que era uma utopia hoje é uma realidade, sessenta e sete cidades brasileiras tem o passe livre (fonte: BBC de Londres, 15 de abril de 2023). Graças a luta pelo direito à cidade, ao passe livre num país que já atingiu pouco mais de 50 milhões de automóveis (Fonte: Garagem360.com.br), agravando o percentual latino-americano de ocupação do espaço urbano, em que o automóvel ocupa 96% e o pedestre 4%.
É nessa conjuntura, que o Brasil conheceu o inferno, maio, junho, 2013. O Jornal Norte-americano New York Times, anunciava: “Protestos emergiram em maio em Natal, uma cidade no Nordeste do Brasil” (fonte: Tribuna do Norte, 19.06.2013). Essa Manifestação ocorrida em todo o país, motivada pelo aumento da passagem em 0,20 centavos impacta pesadamente no orçamento familiar da classe trabalhadora, comprometendo 30% do salário. São as tarifas mais caras entre as grandes metrópoles do mundo.
Tal realidade agrava-se e torna-se dramática na região Nordeste, em que os índices de desenvolvimento econômico são menores, agravando dessa forma as desigualdades e consequentemente a crescente pauperização da população. Quanto a esse fato, há um estudo feito pelo Ministério dos Transportes muito divulgado nas manifestações de 2013, que no Brasil, 42 milhões de pessoas são impedidas do seu direito básico constitucional de ir e vir, por não terem o dinheiro da passagem. Ainda para corroborar a pesquisa do Ministério dos Transportes, segundo o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), no Brasil, 35% da população que vive nas cidades grandes não tem dinheiro para pegar ônibus regularmente (IPEA 2003). Muitas pessoas estão excluídas da educação porque não pode pegar o ônibus até a escola.
Esse quadro de precarização de nossa sociedade, agudiza-se, quanto ao Imbróglio político e econômico criado em torno da mobilidade urbana em nossa cidade, que sempre foi refém de um feudo empresarial que a extorque.
Quanto à mencionada extorsão, por ventura, possa parecer um ranço ideológico ou até mesmo força de expressão, mas, pasmem! Nada disso, são estudos técnicos especializados em metodologia cientifica da área econômica e social.
Pois, senão vejamos o que afirma a pesquisa do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos): Natal, entre os anos de 1996 e 2013, as tarifas elevaram-se 458,14%, enquanto a inflação foi de 196%.
Então, a diferença entre inflação e tarifa é de 0,69 centavos por viagem em prol dos empresários, segundo o ILAESE (Instituto Latino Americano de Estudos Sociais e
Econômicos). Segundo o ILAESE são 352 mil viagens por dia, o que corresponde a 90 milhões por ano, divididos entre seis empresas, segundo os cálculos do referido período.
Seria essa uma das tão propaladas “Caixas Pretas” reivindicadas por milhares de manifestantes, para que o SETURN (Sindicato das Empresas de Transportes Urbanos do Rio Grande do Norte) demonstre a sua tão oculta planilha de custos? Os usuários dos transportes coletivos têm o direito a transparência da planilha de custos, pois afinal, a partir dela é que se determina o valor da passagem.
Durante os meses de abril e maio, assistimos pela televisão a publicidade do SETURN defendendo a licitação, o que nos deixam surpresos, após as licitações dos anos 2016 e 2017 darem desertas. Quando um abutre se acerca de um sanduíche vegetariano, temos a certeza que há algo de podre dentro dele.
Essa metáfora ocorreu em sete estados e no Distrito Federal numa fraude bilionária: Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Pará e Bahia. (fonte: G1 em 04.08.2016). Coincidentemente, antes da licitação todos foram assessorados por empresas especializadas em transporte público causando um prejuízo ao erário público de 16 bilhões de reais. (fonte: G1 em 04.06.2010).
Essa organização criminosa tem sua sede no Rio de Janeiro, exerce um forte lobby no Congresso Nacional e no Senado, em defesa de suas pautas, pois vejamos o que ocorreu com um Projeto de Lei Social Nº248, de 2013, de autoria do Senado Renan Calheiros, que institui o Passe Livre Estudantil para todos os estudantes do país, ao custo de 15, 5 bilhões anuais. (Fontes: https/www25senadolegbrweb/IPEA.gov.br).
Esse projeto foi substituído pelo PL-310/2009, que instituiu o regime especial de incentivos para o transporte coletivo urbano, que reduz o preço da passagem em 15% por meio de isenções de impostos, entre outras medidas. Agora o texto depende da Câmara para entrar em vigor. Ainda, por conseguinte, foi analisada a PEC 90/11 de autoria da Deputada Federal Luíza Erundina que inclui o transporte no rol dos direitos sociais no artigo 6º da Constituição Federal (Fonte, IPEA.gov.br).
Entre 2010 e 2016 a máfia dos transportes, apenas no Rio de Janeiro distribuiu de propinas entre políticos, 500 milhões. Nessa farra das propinas estavam autoridades ligadas ao governo, só o ex-governador Sérgio Cabral, acusado de receber 122,8 milhões de reais, para que concedesse vantagens como altos reajustes nas tarifas de ônibus ou retenção irregular do Rio Card.
A máfia, além dos transportes opera com banco, turismo, hospitais, entre outros empreendimentos. A falta de investimentos em metrôs ou barcas é creditada a essa máfia de ônibus que financia políticos corruptos em épocas de eleições ou através de propinas. (Fonte: Jornal El País, Brasil. 04.07.2017-FelipeBetim).
Qualquer semelhança com a nossa realidade e a conjuntura dos fatos, é mera coincidência? Em Natal, na soleira do descortinar das eleições encontra-se em processo a licitação dos transportes, em que o prefeito, transforma-se em vassalo e ventríloquo do SETURN.
Qual um tabaréu do “Caicó Arcaico” em que foi gerado a sua tradição política envia um Projeto de Lei para a Câmara revogando O Projeto de lei anterior, fruto de uma
discussão ampla da sociedade, em que teve a ingerência do Ministério Público, que se opôs ao Projeto de Licitação do transporte em caráter de urgência enviado para a Câmara pelo ex-Prefeito Carlos Eduardo, estendendo para 190 dias para que pudesse ser discutido pela sociedade. (Fonte, G1 09 de 2013).
Vale salientar que essa foi uma das reinvindicações dos ocupantes da Câmara em 2013 (Fonte, Tribuna do Norte,18.07.2013), além da redução do preço das passagens já que, os empresários dos transportes coletivos foram isentos de vários tributos federais. (Fonte, rádiosenado22.05.2013).
As benesses ao setor de transporte coletivo não param aí, a medida provisória de 25 de agosto de 2022, liberou 2,5 bilhões de recursos da União para custear a gratuidade para idosos com 65 anos ou mais do sistema de ônibus, trens e metrôs. (fonte, Portal da Câmara dos Deputados, 25.08.2022).
Essa Medida Provisória tem o seu encerramento em 15 de fevereiro de 2023, anunciada pelo Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. (Fonte:SenadoNotícias.15.02.2023).
A derrama em prol das empresas de transportes coletivos continua, pois, no Rio Grande do Norte, a Secretaria de Tributação, na desoneração de ICMS, beneficiou o setor acima referido em 50 milhões entre 2000 e 2023. (fonte, AgênciaSaibaMais.15.04.2023.MirellaLopes).
Apesar dos incentivos de toda ordem, até mesmo de condescendências políticas e judiciais ao setor dos transportes, a relação deste com o usuário, muito assemelha-se a de um algoz, ao sucatear a frota de veículos que por ano era para renovar de 60 a 70 ônibus, nos últimos cinco anos foram adquiridos oito veículos novos.
20% dos veículos adaptados para cadeirantes, 15% estão quebrados, funcionam apenas 5%.
A Empresa Mobilize Brasil, avaliou 10 das principais cidades do país, no quesito acessibilidade dos transportes coletivos, Natal, com apenas 20% da frota acessível, ficou atrás das seguintes cidades: Fortaleza, Manaus, Recife, Goiânia, Curitiba, Cuiabá, Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo. (Fonte, TN. 14.10.2011).
Como não bastasse tamanho desrespeito aos usuários, o SETURN suprime 34 linhas de ônibus, submetendo a população a toda sorte de vexame, impedindo-a do direito fundamental de ir e vir e suas consequências: o direito ao trabalho, ao lazer, a saúde, a educação e a segurança, por ser obrigada a percorrer longas distâncias a pé.
Somando-se a essa distopia, numa expressão bem rústica, regional, por que não brutal: “além da queda, o coice!”. “O Prefeito de Natal, Álvaro Dias veta o Projeto de Lei que indicava que qualquer alteração de rotas ou cortes de itinerários de ônibus da capital fossem discutidas previamente com a população por meio do Conselho Municipal de Transporte e Mobilidade Urbana”. (Fonte, SaibaMais.17.05.2023).
Após tanto servilismo ao capital, assim como faziam as bruxas em noites de Sabah que beijavam o traseiro do demônio, o Prefeito Álvaro Dias, astuto, em sua ingenuidade
de Tartufo, afirma: ”Nunca vi questão de licitação de ser aprovada, discutida, mudada ou não pela Câmara”. (Fonte, Tribuna do Norte, 09.05.2023).
Com essa declaração o Prefeito assume publicamente a sua incompetência por desconhecer a lei 10.257/2001 da Constituição Federal de 1988, O Estatuto da Cidade, no seu artigo segundo: Garantia do direito à cidade sustentáveis, o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações.
O Prefeito Álvaro Dias demonstra desconhecer também, até mesmo, as atribuições inerentes à sua própria atividade de gestor, no que diz respeito aos cinco princípios básicos, republicanos e democráticos que constituem os cinco princípios da Administração Pública: Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência.
Norteados pelo Estatuto da Cidade e pelo Princípio da Administração Pública é que várias cidades do Brasil realizaram ou estão em curso com a licitação dos transportes em caráter de audiências públicas pelas Câmaras Públicas Municipais, entre elas: Porto Alegre, Vitória da Conquista, Fortaleza, Recife, Rio de Janeiro, Goiânia, Bauru, Valinhos, Ponta Grossa, Maceió, Cuiabá e em São Paulo discute-se a licitação e a tarifa zero.
Natal com a sua atual licitação em caráter de urgência, encontra-se na contramão da tendência das demais cidades brasileiras que através das audiências públicas irão adequar os transportes às necessidades da população, em consonância com a legislação federal, o direito do idoso, do deficiente, da criança, da mulher gestante e da proteção ao trabalho, no que diz respeito aos motoristas.
Em 2014 terminou o prazo de 10 anos para que as empresas em todo país, tornem a frota totalmente acessível aos deficientes físicos. (fonte G1. 02.12.2014).
O projeto de Álvaro Dias, retira ar condicionado, piso baixo e motor traseiro, contou com a aprovação de 21 vereadores, tendo dois votos contra, de vereadores da oposição. “A exigência desses itens, assim como do tempo de uso da frota em circulação, já havia sido considerada inconstitucional pela Justiça Potiguar em fevereiro de 2021”. (fonte, SaibaMais.11.05.2023).
Quanto ao exposto, para uma reflexão, alguns pensamentos históricos sobre Justiça: “Eles que transformam o Direito em veneno e lançam por terra a justiça (Amós 567), porque vendem o justo por prata e o indigente por um par de sandálias. Eles esmagam sobre o pó da terra a cabeça dos fracos”. (Amós 2,6,7).
“Sabei tanto quanto nós, que só se cogita de Direitos quando há igualdade de poderes, no mais, os fortes fazem o que querem fazer e o fracos suportam o que podem suportar”. (Academus, séc. III e IV a.C).
“Não devemos usar mal de nosso Direito”. (Jurisconsulto Gaio. Séc. II, 130 e e 180 d. C). Sobre o Abuso do Direito.
“Vós estais envergonhados de preocuparem-se em obter riqueza, reputação e honra, mas não vos ocupais convosco, ou seja, com sabedoria, verdade e a perfeição da alma”. (Apology 29e de Platão. Socrátes).
“Não ser a Justiça algo a ser levado a sério”. (Piero Calamandrei – um dos pais da Constituição Italiana de 1948).
Qualquer semelhança com a nossa realidade é mera coincidência.
Portanto, não é sem razão o crocitar “mavioso” dos abutres!

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