“Quem gosta de futebol não tem como não gostar do que Pelé fazia”

 

por JUARY CHAGAS // professor e assistente social 

 

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Pelé em campanha pelas Diretas Já em capa de abril de 1984. Fotografia: Ronaldo Kotscho

Não tenho como não começar a falar sobre Pelé senão falando algo muito forte (e eu não estou nem aí para quem achar que é um exagero): quem não está triste hoje não entende NADA de Brasil.

O antigo treinador de futebol italiano Arrigo Sacchi cunhou a célebre frase: “o futebol é a coisa mais importante dentre as menos importantes”. Eu concordo muito com ele e vou além: no Brasil, o futebol é tão importante que chega a ser mais importante que algumas outras coisas importantes. O futebol para o Brasil é algo tão culturalmente conectado com o povo que, de algum modo, está sempre se confundindo com sua essência. Logo, o ser humano mais importante para o futebol que já pisou nesse planeta (oriundo de classes populares e brasileiro) é igualmente muito importante. É o que explica, após sua morte, Pelé ser homenageado por pessoas que nunca o viram, mas que sentem sua partida, muitas vezes de modo semelhante a alguém muito próximo.
Sou um deles.
Eu fui apresentado a Pelé pelo meu pai, no ano de 1987, quando tinha seis anos de idade. Como praticamente toda criança brasileira, na fase de me interessar por futebol. Jogando e acompanhando.
Meu pai possuía na época um videocassete da marca JVC e como colecionador de VHS que era, havia conseguido uma cópia dos VTs integrais dos jogos da Copa do Mundo de 1970. Era um feriado e ele me chamou para assistir com ele.
A adoração pelo futebol de Pelé se fez imediata, até porque isso não era um privilégio meu. Quem gosta de futebol não tem como não gostar do que Pelé fazia, simplesmente, porque ele era a síntese perfeita do que era o jogo: o mais forte, o mais habilidoso, o mais preciso, o mais frio, o mais inteligente… Havia ainda um componente extra: era o mais marcado, o mais caçado, o mais violentado pelos adversários.
Naquele dia eu vi pela primeira vez e nunca me saiu da cabeça a imagem do gol de Jairzinho contra a Inglaterra (meu pai disse antes de passar o VT que aquela era a campeã do mundo na época). Pelé recebe um cruzamento de Tostão cercado por três jogadores ingleses e ele, simplesmente, “pisa” na bola que veio pelo alto, olhando sempre para frente, metros atrás da pequena área. Eram três defensores contra um único homem, mas o olhar dos ingleses era de desespero e o de Pelé, bom, era o olhar de quem pensou em tudo, planejou tudo, de quem já sabia tudo que ia fazer enquanto a bola ainda cruzava a área pelo alto. O passe na direita que encontrou Jairzinho livre só poderia ser possível por alguém como ele.
A busca por conhecer mais o Pelé depois desse episódio apenas confirmou toda a impressão inicial. Pelé foi o jogador que mais fez gols na história do futebol. Ele também é o responsável pela evolução tática do jogo. Antes e no surgimento de Pelé para o mundo, o futebol era um esporte em que se atacava com 5 jogadores. Foi a existência de Pelé que obrigou a mudança de composição defensiva e a criação de funções (como o volante) para que ele pudesse ser parado. Foi também por causa da violência sofrida por Pelé na Copa de 1966 (cuja final foi marcada por uma verdadeira arena de “artes marciais” entre Alemanha e Inglaterra), que quatro anos depois a entidade organizadora das copas se viu obrigada a instituir os cartões amarelo e vermelho. Não é nenhum exagero dizer que só conhecemos o futebol como ele é hoje, por causa de Pelé.
Espero que pelo menos entendam que é algo absolutamente normal uma criança querer ser uma pessoa como essa. E, claro, eu não era o único. Até o ano de 1994, a seleção brasileira era “apenas” tricampeã do mundo. Ou seja, até 1994, apesar de existir dezenas de jogadores de futebol extraordinários, era difícil que um fosse de fato marcado na história, simplesmente, pelo fato de que dos 3 títulos conquistados, todos foram com Pelé. Após 1994, se agigantaram como ídolos Romário, Bebeto, Rivaldo, Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho, dentre outros que possibilitaram o hoje pentacampeonato. Antes, não. Antes só tinha os ídolos dos clubes que cada um torcia e ele, Pelé. O único acima de qualquer dúvida.
Quero dizer, conforme fui adquirindo maturidade (em especial política), ia produzindo questionamentos ao indivíduo Pelé, ao Edson Arantes do Nascimento. Assinalo, também, que nenhum dos seus feit,os extraordinários no esporte apagará seus erros, em especial os cometidos com a sua filha Sandra Regina.
À exceção desse fato condenável (mas que não é nada novo em se tratando de um homem e ainda mais inserido em um contexto histórico bem mais atrasado que hoje), por muitos anos reproduzi o mantra de parte da esquerda do Pelé extraordinário em campo e miserável como sujeito político. Dito, isso, me dou ao direito de hoje, após tomar conhecimento de vários fatos e realizar análises que antes não havia feito, relativizo (sim) o suposto papel negativo e/ou suposta omissão de Pelé em relação aos temas políticos.
Simplesmente, porque após quase duas décadas de militância vejo sujeitos que cometeram e cometem (e aqui também me incluo) uma série de erros, mesmo com toda formação crítica (ou, na pior das hipóteses a oportunidade de se formar). No recente documentário, lançado em 2020, Pelé ao falar da ditadura militar disse que sempre era “procurado pelos dois lados”, mas que não se posicionava porque não tinha conhecimento para tal à época. Anos depois, com o conhecimento público da política e dos crimes da ditadura, Pelé aparece publicamente apoiando o movimento das Diretas Já! (fato este muitas vezes ocultado, intencionalmente ou por desconhecimento).
Pelé também sempre foi muito cobrado por um posicionamento antirracista. A verdade é dura, mas hoje é muito mais fácil ser antirracista que antigamente. Outra verdade que machuca: mesmo em silêncio, Pelé foi mais útil para a luta antirracista do que muita gente que se proclama “do movimento”.
Sou filho de trabalhadores, negro, e por circunstâncias específicas tive a oportunidade de estudar em colégio privado de classe média durante as décadas de 1980 e 1990. Eu sofria racismo quase todos os dias numa época em que sequer os professores eram formados para combater isso.
No entanto, era com Pelé que eu ia à forra. Dez entre dez coleguinhas (a maioria brancos) queriam ser, quando se tratava de futebol, Pelé. A minha melanina nesse ponto deixava de ser um motivo de chacota para ser uma vantagem. Eu não tinha a menor consciência disso na época, mas hoje me parece nítido: foi com Pelé que os negros passaram a ter algum tipo de valor no Brasil do século XX, pela primeira vez.
Porque ele era o melhor de todos. Porque era o mais notável. Seu apelido era de uma marca de café, justamente por ser negro e ainda assim foi reverenciado em todo o mundo, transformando-se no símbolo de um país. Para quem achar que estou exagerando, eu sugiro que faça um teste: vá em qualquer país do mundo onde você não sabe falar uma única sílaba do idioma e diga apenas “Pelé”, apontando para si mesmo. Vão saber que você é brasileiro.
Muitas pessoas, vários amigos e colegas, fizeram “obituários antecipados” de Pelé, devido ao fim já conhecido da doença terrível que o acometeu. Eu não fiz, mas não porque seja contra. Ao contrário, eu acho muito bacana (e no caso dele, merecido) que se façam muitas homenagens em vida. Eu não fiz por um único motivo: eu, ateu que sou, ainda alimentei um traço de esperança. Óbvio, o quadro oncológico era irreversível, mas não se tratava do meu conhecimento da realidade e sim do meu desejo: estive torcendo todos esses dias para o impossível acontecer. E hoje, com a sua morte, eu chorei. Hoje era um daqueles dias que não devia ter chegado.
A gente sempre diz, quando alguém importante morre (seja conhecido ou não), que o corpo se vai, mas aquilo que fez de notável em vida ficará para sempre. É uma linda frase que serve para homenagear todos que gostamos, mas que muitas vezes nos parece abstrato.
Hoje, percebi (de maneira muito concreta) que a morte de Pelé de fato finaliza o indivíduo, mas não encerra sua existência. Todas as vezes que – seja num grande clube do futebol mundial ou brasileiro, entre jogadores de renome, seja num campo de areia da várzea –, todas as vezes que houver uma “briga” pela camisa 10 (que antes dele era somente um número, sem nenhum significado), Pelé está ali, se fazendo presente.
Eu só posso dizer: obrigado por tudo.

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