GORETTI GAIVOTA: A resistência negra e feminina no cordel.

por NANDO POETA
Ponto de Memória Estação do Cordel
Goretti Gaivota – Arquivo pessoal

Abram alas que elas vão passando, abrindo as veredas, trilhando a senda tortuosa, mas com afinco desbravam seus espaços. Nunca foi nada fácil para as mulheres nesta sociedade em que seus passos, muitas vezes, foram cobertos com o próprio sangue.

Nesse mar das adversidades, enfrentando as turbulências do machismo, elas foram se impondo e de fato escancarando os caminhos, com seu brilho, iluminando a vida.
Como em todas as áreas, no mundo cordeliano não foi muito diferente. A primeira mulher a publicar um folheto, no ano de 1938, não se sentiu à vontade para assumir a autoria de seu cordel. Maria das Neves Baptista Pimentel (1913-1994) assinou o primeiro cordel, “O violino do diabo ou o valor da honestidade”, com o pseudônimo de Altino Alagoano, o primeiro do marido, Altino de Alencar Pimentel, e o segundo nome vem pelo fato do Altino ser de Alagoas.
Por que isso acontecia?
Na sociedade patriarcal, principalmente no estágio em que se encontrava os anos 30, era muito raro as mulheres assumirem a sua produção literária, geralmente por receio de sofrer represálias. 
A dissertação “A Representação da Mulher na Literatura de Cordel” observa com muita propriedade: “(…) o poder de opressão da sociedade atual permanece em constante vigor – fato esse comprovado a partir do momento em que a mulher decide participar de uma vida social mais ativa” (Maria Francinete de Oliveira apud Fátima Barreto, 1983).
Apesar de Maria das Neves ter aberto o caminho para as publicações, a partir de 1938, podemos constatar que só no ano de 1970 se registrou com mais intensidade as publicações dos folhetos de autoria feminina.
O tempo foi passando e cada vez mais com a intervenção feminina na realidade, janelas foram se abrindo. Apesar dos obstáculos, as muralhas foram se desmoronando.
No “Cordel Mulheres em Luta”, Nando Poeta, fala dessa trajetória:
Para obter as conquistas
Travou-se muitas batalhas.
Por vezes verteu-se sangue,
Pelo corte da navalha,
Mas a sua força ativa
Derrubou muita muralha.
(POETA, 2009)
Na esquina do mundo, na capital banhada pelo o Rio Potengi, muitas mulheres navegaram nos mares poéticos. Zila Mamede, vindo da Paraíba, se ancorando em Currais Novos, depois desembarcando em Natal, foi a interseção para esse grande encontro.
No livro Navegos, Zila Mamede no seu poema “As Enchentes e a Cruz da Menina” dispara:
Enchentes de minha terra,
Rios, chuvas do sertão,
Plantei vazantes no açude,
Não vingou a plantação.
Há secas nos meus cabelos
Mandacarus no meu chão
Na vida, sou retirante
Em que pastos morrerei?
(MAMEDE, 1978)
Nesta estrofe a autora deixa a pista de que interagiu com os folhetos de feiras. No seu percurso de vida, ela havia mergulhado na diversidade do cordel:
Não leio poesia popular por esnobismo: cresci ouvindo leitura de folheto popular, tanto em Nova Palmeira quanto em Currais Novos. Era a literatura de que a gente dispunha, no sítio do meu avô: os primeiros personagens da literatura que eu conheci foram Carlos Magno, no folheto Carlos Magno e os doze pares de França e Roberto do Diabo. Depois ouvi muitas vezes e chorava muito com a leitura de A Donzela Teodora, A princesa Magalona e a Imperatriz Porcina. Mas a minha maior emoção era o Pavão Misterioso. (MAMEDE, 1987)
Foi nesse universo que as mulheres deixaram a sua marca no gênero de cordel. No Dicionário de Poetas Cordelistas do Rio Grande do Norte, o autor Gutenberg Costa (2004) aponta várias delas. Aqui citamos algumas que trilharam nas ruas da cidade natalina, entre elas: Maria Oneide de Lima e Souza (1924), natural de São Tomé – RN, se radicou em Natal residindo no bairro de Candelária; Nati Cortez (1910-1984), poeta e pesquisadora que publicou o cordel “Os mistérios dos discos voadores” (1972); Rejane Lopes Cardoso Serejo, nasceu em Natal no dia 25 de março de 1949, além de escrever seus cordéis utilizou sua coluna no jornais de Natal para falar dos personagens e obras do mundo cordeliano; a paraibana Clotilde Tavares, radicada há anos em Natal, as cearenses  Maria Giselda Trigueiro da Silva e Teresa Custódio de Queiroz; Josenira Fraga e Goretti Gaivota, que fizeram em parceria o cordel para divulgar a candidatura a vereadora da professora Elizabeth Nasser (1936-2020), elas versejam assim:
Caro leitor natalense,
Queremos apresentar
A luta de uma mulher,
Você vai apreciar!,
Seu nome é Elizabeth
Sua história vamos contar.
(FRAGA; GORETTI, 1992)
Cordel Elizabeth Nasser, vereadora
GORETTI GAIVOTA, a poeta da Esperança!
A Goretti Gaivota conseguiu impulsionar a construção de textos sobre a temática da mulher na sociedade. Maria Gorete da Silva, seu nome de batismo – (1962-2020), natural de Natal-RN assinava suas obras literárias como Goretti Gaivota. Era atriz do Grupo Teatral Fala Esperança, cordelista, servidora municipal, escreveu suas obras com a poética em defesa dos direitos das mulheres e contra o racismo.
No Cordel “Minha História em Cordel”, a poetisa se apresenta:
Sou poeta de praça pública
E a oito Cordéis publiquei;
Em três coletâneas poéticas
Meu poema eu já registrei;
Com o Grupo Fala Esperança
Em peças eu contracenei!
Bem melhor que ser poeta;
Muito mais que ser atriz,
Eu prefiro ser a Cordelista
Que fala dos muitos Brasis!
Eu sou mulher Nordestina.
Tenho na Raça Negra a raiz!
Sou Goretti, sou a Gaivota
Agitada como uma procela!
Sou Maria e sou consciente
Da força que em mim revela
A habilidade com a palavra
E tudo que posso fazer com ela!
Eu vou terminar a estrofe
Com o verso em que comecei
A transformar em Lirismo
Esta saga que apresentei:
No ano de sessenta e dois
À revelia de tudo, vinguei!
(GAIVOTA, 2012)
A poeta Gaivota foi responsável por produzir, a pedido do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher da Prefeitura de Natal, uma trilogia sobre a violência sofrida pelas mulheres: “Violência Doméstica” (1986); “Violência no Trabalho e a Violência na Rua” (1987). Além dessa série, publicou “Mulher Negra” (1988); “O Grito da Mulher” (1990); “Direitos da Mulher” (1992), entre outras obras.
Em “Violência na rua”, ela constata:
Companheira que me lê,
Preste muita atenção
Neste caso que lhe conto
Quero sua opinião:
– Por que é que a mulher
Sofre tanta agressão?
O marido a escraviza.
No trabalho é explorada.
Se pela rua ela anda,
Sempre é discriminada.
Até em terrenos baldios
É morta ou violentada! (GAIVOTA, 1987)
Soltando a sua voz, meteu a colher na “Violência Doméstica”, na edição revisada em 2011:
A discriminação da mulher
Decreta brutal sofrimento.
Umas não têm vez nem voz,
Tampouco discernimento:
E fica à mercê do algoz,
Entregue ao recolhimento.
Muitas vezes por inocência,
Por ignorância ou temor,
A mulher não se rebela,
Perante o seu agressor!
Às vezes até sente culpa.
Pensa que é gesto de amor! (GAIVOTA, 2011)
A campanha que propagou os cordéis sobre a violência contra a mulher, no ano de 1987, pautou na cidade de Natal um conjunto de ações que levaram às ruas a necessidade de se combater qualquer tipo de violência contra as mulheres.
Para impulsionar essa campanha foram organizados pedágios nos cruzamentos da Avenida Deodoro com a Rua Jundiaí na Cidade Alta; em frente ao Centro de Saúde do Alecrim na Avenida Alexandrino de Alencar com a Mario Barreto e na antiga Avenida Bernardo Vieira, hoje Nevaldo Rocha com a Salgado Filho. Nestes locais os cordéis com a temática da violência doméstica foram distribuídos amplamente à população.
A distribuição dos folhetos de Goretti Gaivota aconteceu, também, no Conselho Comunitário da Cidade da Esperança, onde ocorreu a encenação da peça sobre a Violência Doméstica pelo Grupo Teatral Fala Esperança.
Muito se vê hoje em dia,
Mulher sendo assassinada
Por marido ou namorado.
Ou então sendo estuprada
Por pai, irmão ou vizinho,
Dentro da própria morada!
(GAIVOTA, 2011)
A Poeta atriz sobrevoava toda esta cena cultural de Natal, sempre reafirmando a necessidade da emancipação das mulheres. O objetivo de toda campanha era desenvolver uma campanha de conscientização entre as mulheres que sofriam a opressão no trabalho, em casa e na rua.
Seu lar, sua casa, seu canto,
Se transforma em cadeia…
Por não ter maior instrução
Ela permanece mais alheia!
Pois depende desse homem
Que a humilha e esfaqueia.
Agora, chega de violência!
Vamos combater este mal!
Em qualquer relacionamento
Não se pode ter por usual
Subjugo, maltrato ou ofensa,
Seja ela física ou verbal!
(GAIVOTA, 2011)
Para manter com firmeza a bandeira da emancipação política das mulheres, seria preciso superar as enormes muralhas que atravessam no meio do caminho da seara feminina. Em 1988, a pedido mais uma vez do Conselho Municipal de Direitos da Mulher, a poeta aceitou o desafio de elaborar um novo cordel, agora sobre “A Mulher Negra” na sociedade banhada de preconceitos.
A UFRN, através do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, em parceria com o Conselho Municipal dos Direitos da Mulher, em 1988, realizaram uma programação sobre a “Abolição, 100 anos depois” com a presença de Suely Carneiro, coordenadora do Programa da Mulher Negra do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.
Neste evento, a atriz e cordelista Goretti Gaivota teria o seu cordel sobre “A Mulher Negra” distribuído para os presentes, mas no decorrer da palestra foi comunicada que seu poema havia sido censurado, portanto, retirado da programação. A justificativa foi que a “linguagem usada no folheto estava agressiva e poderia incitar a violência e ao preconceito, e por isso seria submetido ao estudo” (Diário de Natal, 1988).
A poeta Gaivota se dirigiu ao plenário da palestra que estava sendo realizada na Biblioteca Central Zila Mamede da UFRN, explicou o ocorrido e perguntou aos presentes se poderia declamar o seu cordel. De pronto os participantes concordaram em ceder a palavra à cordelista lhe dando o direito em apresentar o cordel naquele momento.
Diante de todo o constrangimento de uma palestra que abordava a temática do preconceito vivido por toda população negra, os organizadores não tiveram como negar o espaço, e Gaivota soltou em alto e bom som a sua voz:
Escrevo em versos de cordel
A força do preconceito,
Que atira a raça negra
No charco do desrespeito,
Que nega a sua cultura
E elimina seus direitos.
Nos primórdios da história
Desde o descobrimento
Neste país continente
Predomina o pensamento
De explorar o mais fraco,
Em todos os segmentos.
O Brasil visando lucros
Apelou pra escravatura,
Comprou o escravo negro
Para usar na agricultura
A saciar seus prazeres,
Mantendo-o sob tortura.
É sabido que a mulher
Muito é discriminada.
A negra sem exceção,
É muito mais explorada.
No que se refere a empregos
Sempre é escorraçada.
A negra pode ter fama,
Beleza e até posição.
Apesar de tudo isto
Predomina a rejeição
– Sua vida é marcada,
Pela discriminação.
Até na literatura
E na música popular,
O racismo segue à risca,
Querendo perpetuar.
O ditado que afirma:
Negra é só pra fornicar!
(GAIVOTA, 1992)
Este mesmo Cordel, “A Mulher Negra”, censurado no evento ocorrido na UFRN em 1988, teve a sua publicação, posteriormente, pelo Conselho Municipal dos Direitos da Mulher (1992).
Por este e outros versos, a poeta Gaivota deixou seus passos cravados na história da luta pela emancipação das mulheres, como afirmou na sua página no Recanto das Letras:
A gente tem que despedaçar as algemas, nega, romper o silêncio das páginas em branco, ainda que seja tingindo-as de suor e sangue (…) Creio caríssima, que certamente discorreríamos sobre a máxima da Simone de Beauvoir: “Não se nasce mulher. Torna-se mulher”! (GAIVOTA, 2012)
A Gaivota voou, como todo pássaro foi para outro litoral, também belíssimo, Ubatuba, uma linda praia do litoral norte de São Paulo. Pelo que se consta continuou a navegar no mundo poético, provavelmente se alimentando das infinidades de novos poemas, sempre no caminho da libertação da mulher e da luta contra o racismo que permeou toda a sua obra.
Em 2020, tivemos nas redes sociais a triste notícia de seu encantamento. A poeta estava acometida de um câncer de pâncreas e foi infectada pelo Covid-19, agravando seriamente o seu quadro clínico. Depois de 11 dias internada em um hospital de São Paulo, faleceu aos 58 anos no dia 28 de novembro.
Pouco se falou na cidade em que nasceu, mas quem produziu sobre o que produziu, não poderia ficar no esquecimento. Seus poemas são verdadeiros manifestos na defesa intransigente dos direitos da mulher e no combate ao racismo.
Nós, que fazemos parte do Ponto de Memória Estação do Cordel, não poderíamos deixar o trem passar. A Gaivota voou, mas deixou o seu legado e aqui fazemos o registro. E você leitor, não deixe morrer a poética de uma poeta. Propague mais essa história por aí.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BARRETO, Fátima. Lindalva: o cordel em forma de mulher. In: Diário de Natal. Natal, 1983.
COSTA, Gutenberg, Dicionário de Poetas Cordelistas do Rio Grande do Norte.  Mossoró: Queima Bucha, 2004.
COSTA, Gutenberg, A presença feminina na Literatura de Cordel do Rio Grande do Norte.  Natal: Queima Bucha e Editora 8, 2015.
GAIVOTA, Goretti. Violência Doméstica – Volume I. In: CMDM –Conselho Municipal dos Direitos da Mulher, Natal-RN, 1986.
GAIVOTA, Goretti. Violência Doméstica. In: Recanto das Letras. São Paulo, 2011. Disponivel em: https://www.recantodasletras.com.br Acesso em: 19 dez. 2022. .
GAIVOTA, Goretti. Violência no Trabalho Rua – Volume II. In: CMDM –Conselho Municipal dos Direitos da Mulher, Natal-RN, 1987.
GAIVOTA, Goretti. Violência na Rua – Volume III. In: CMDM – Conselho Municipal dos Direitos da Mulher, Natal-RN, 1987.
GAIVOTA, Goretti. A Mulher Negra. In: CMDM – Conselho Municipal dos Direitos da Mulher, Natal: 2ª ed.,1992.
GAIVOTA, Goretti. Tsunamis Emocionais. In: Recanto das Letras. São Paulo, 2012. Disponivel em: https://www.recantodasletras.com.br/cartas/3476935. Acesso em: 19 dez. 2022.
FRAGA, Josenira; GORETTI, Gaivota. Elizabeth Nasser Vereadora nº 40.660. Natal, 1992.
MAMEDE, Zila. Navegos. Belo Horizonte: Vega,1978.

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