por NILO EMERENCIANO // arquiteto e escritor

 

Foto: Canindé Soares

Leio nos blogs de notícias que a estátua de Iemanjá instalada na Praia do Meio foi pintada de negro. Não imagino qual tenha sido a intenção do autor da má proeza – se depredar ou corrigir um erro evidente.

Erro porque iemanjá é uma deusa do panteão africano, portanto uma deusa negra, ou Orixá, com grandes e generosos seios. Na nossa iconografia, no entanto, ela é representada com a pele branca, longos cabelos e usando vestido azul-claro, talvez de forma a associá-la com Nossa Senhora da Conceição. O artista assim a representou na estátua da praia. Estranhos os caminhos do sincretismo que levam uma Orixá negra a se tornar a mãe de Jesus.
Uma passada rápida nas representações de Jesus revela fenômeno parecido. As mais antigas mostram-no de cabelos e barba cacheados, pele morena, olhos amendoados, em evidente tipo oriental. Depois vai se ocidentalizando, o nariz afilando, o cabelo se tornando castanho claro e até louro, os olhos azuis. No cinema (Rei dos Reis – 1961) foi representado pelo ator americano Jeffrey Hunter, vejam só, zero de traços orientais. Minha mãe em sua devoção guarda uma infinidade de santinhos do Cristo. Em um deles Jesus se tornou quase albino, mais parecido com Sivuca, tão branco o fizeram. Mas vamos voltar a Iemanjá.
Se a ideia foi da pura e simples depredação é de se lamentar, pois o gesto revela uma profunda intolerância religiosa e desrespeito às crenças e práticas de um importante segmento da população. Intolerância que sempre esteve presente, mas que se exacerbou nos últimos anos. Essa intolerância se manifesta principalmente contra as religiões de origem africana – Candomblé e Umbanda, o que revela também, de forma sub-reptícia, a intolerância contra os pretos e os pobres, ou seja, raça e classe social. Acima de tudo, uma não aceitação das diferenças ou alteridades, como se usa chamar hoje, impensável em um mundo globalizado. Conhecemos os extremos: o atentado ao semanário Charlie Hebdo, que resultou em onze pessoas mortas. As estátuas centenárias de Buda explodidas pelo Talibã. Os ataques a Mesquitas e Sinagogas sempre com saldo de mortos e feridos. Na praia da Bica, na Ilha do Governador, um homem fez disparos e gritou impropérios – macacos, macumbeiros, demônios – contra fiéis de Iemanjá que realizavam uma cerimônia. Os chutes desferidos contra a imagem de nossa senhora Aparecida em um programa de TV são uma amostra desse comportamento.
O triste e preocupante é que geralmente essa intolerância se estende às minorias de toda ordem: homossexuais e todo o grupo LGBTQI+, pretos e pobres, moradores de rua e drogados. Oito jovens foram mortos no massacre da Candelária, em 1993. O Pataxó Galdino foi queimado vivo em Brasília. Padre Júlio Lancellotti é constantemente ameaçado de morte por seu trabalho beneficente junto aos habitantes da Cracolândia, em São Paulo. E os fatos tristes se repetem todos os dias, a TV nos mostrando como são tratados os pretos e pobres ou, como canta Caetano e Gil em Haiti: quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres/E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos.
Sabemos, sim, como se tratam os pobres. Em Recife, a madame largou o filho da doméstica no elevador do prédio, sem companhia, e ainda apertou o botão. O garoto desorientado procurou uma saída e “flutuou no ar como se fosse um pássaro/E se acabou no chão feito um pacote flácido/Agonizou no meio do passeio público”, como canta Chico Buarque.

Sabemos também a que leva tudo isso, a história está sempre aí pra nos lembrar mesmo quando pretendemos esquecer.

Essa semana tivemos, eu e o amigo jornalista Rogério Marques, uma conversa longa com o senhor Juvenal Tavares da Costa, nascido em outubro de 1921, cem anos, portanto, completos. Juvenal foi sapateiro, motorista de carro de aluguel, jornalista, gráfico, mas, sobretudo, foi um militante do PCB que também este ano se tornou centenário no Brasil. Seu relato é uma sucessão de perseguições, arbítrios, prisões ilegais, cerceamento do direito de exercer sua profissão, ações que marcaram profundamente a sua vida e a de sua família. Seu crime: abrigar uma ideologia vista como exótica e criminosa, mesmo que ele jamais tivesse praticado algo ilegal ou algum tipo de violência. Tranquilo, sereno, lúcido, Juvenal é um homem sem vícios e cheio de gratidão por estar vivo e livre.
Conta que em Recife – e isso marcou sua vida – nas proximidades da Igreja de São Pedro, uma jovem estava caída necessitando socorro. Juvenal procurou o Padre que apenas sugeriu que ele ligasse para a emergência, mas negou socorro e o uso do telefone da sacristia. Um pastor protestante que se aproximou orientou para que orassem, e a prece iria curar a jovem. Surgiu então um Opala, na época um carro de luxo. Dele desceu um casal que tomou o corpo da jovem caída, colocou-o no banco traseiro e a levou ao hospital. Antes de saírem Juvenal lembrou de perguntar pela religião do casal.  À resposta: – Somos espíritas. Juvenal, que era ateu convicto, começou uma nova etapa na busca do conhecimento religioso. Ah, Juvenal, uma felicidade conhecer você, sua simplicidade serena e a verdade que você carrega no coração.

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