por NILO EMERENCIANO // arquiteto e escritor
Ilustração: Pixabay License

Em fins do ano de 1959 surgiu, não se sabe de onde, uma onda sobre o advento do fim da década.

Adultos e crianças cantarolavam uma paródia de Pisa na Fulô, do maranhense João do Vale: “Pisa na fulô/pisa no buraco/sessenta vem aí/negro vai virar macaco”. Eram outros tempos. Ninguém era processado por coisas assim. A semana santa não teria graça sem a malhação do Judas, gesto que traz implícito um rancor milenar. Minha avó, seridoense, repetia sem o menor constrangimento máximas que deveria ter aprendido com meus bisavós: Negro em pé é um toco. Deitado é um porco. Ou o mais conhecido: Negro quando não caga na entrada, caga na saída. Ariano Suassuna no Auto da Compadecida colocou um preto para representar Jesus, filho de Deus, para a estranheza de João Grilo.
Os ciganos eram, também, alvos de preconceitos. No mais das vezes como ladrões espertos. Sua presença nas proximidades despertava aversão. Não eram aqueles ciganos ricos do sul do país ou das novelas da Globo. Eram meio que andarilhos, quase maltrapilhos. As mulheres ofereciam seus serviços de ler as mãos das moças e senhoras. Tive a oportunidade de ver um rico casamento cigano em Porto Seguro, sul da Bahia. Belíssimo. Realizado em uma igreja católica.
Em garoto eu via em uma transversal da Av. Ulisses Caldas, no centro, uma fachada que ostentava uma estrela de Davi. Depois soube ser uma sinagoga. No Cemitério do Alecrim, entre os túmulos de cristãos, havia um setor de jazigos de judeus. Não lembro ter jamais acontecido uma palavra ou gesto sequer que discriminasse esses irmãos de outras terras.
As histórias que eu ouvia da minha avó, traziam, na voz da tradição, restos de antigos confrontos. Uma das bruxas era uma velha chamada Moura Torta, árabe preta e má, que enfeitiçava a futura princesa e ocupava seu lugar ao lado do príncipe. Nessas histórias havia sempre uma madrasta má – não conheço registros de madrastas boas.
Minha mãe chamava aqueles de orientação sexual diferente de “amulherados”. Ou de “homemsexual”, o que sempre me fazia corrigir entre risos: – Mamãe, homem sexual sou eu, meu irmão, meu pai. O certo é homossexual.
Pôr em dúvida a masculinidade dos desafetos é prática antiga. Fresco, veado, pederasta. Ou para desmoralizar: “- Não vale um peido de um veado!” No interior essas pessoas não eram agredidas. Reuniam-se às mulheres na cozinha, nas conversas de comadres, nos cabarés. Faziam unhas ou cabelos. Prostitutas no seu espaço, a zona, eram respeitadas. Fora deles eram xingadas. Rocas-Quintas, prostituta ambulante, ouvia impropérios à sua passagem no exercício da profissão.

A defesa dos valores do ambiente doméstico era obrigação.

O homem traído pela esposa, se não reagisse em defesa da honra seria discriminado para sempre como corno-manso. A mulher era posta porta afora. Assim também devia agir para com algum engraçadinho que avançasse na virgindade da filha. O sedutor devia pagar com o casamento na polícia ou corria risco de vida. Jackson do Pandeiro fez loas à lua, lugar onde, segundo ele, as coisas são invertidas: “Quando tem casamento na polícia/as moças é que são sentenciadas/se porventura a mulher for casada/e enganar o marido a coisa é feia/Ela pega dez anos de cadeia/e o conquistador não sofre nada”.
Os árbitros de futebol da cidade eram poucos e conhecidos. Jáder Correia, Luís Meireles. Meireles era dono da lanchonete do Colégio Winston Churchill. Alcunhado Cobra Preta. Ouvia xingamentos de todo tipo ali no pequeno Juvenal Lamartine onde a sua mãe era sempre bem referenciada. Os jogadores cuspiam uns nos outros e até, nos casos mais graves, enfiavam o dedo médio no traseiro do seu marcador. Não havia VAR, restava ao zagueiro o soco em revide, e aí era expulso e nós, do público, ficávamos rindo daquilo tudo. Às vezes a coisa extrapolava, como quando o árbitro, ao responder à pergunta do repórter que queria saber o motivo de uma expulsão, disse em alto e bom som ao microfone: – Ele me chamou de feladaputa! Por essas e outras, Biró era um jogador prevenido. Sempre, antes de responder ao repórter, perguntava: – Qual é a rádia? João Machado fazia da irreverência o atrativo principal da sua coluna “O Curruchiado de João Machado.” De vez em quando era tirado do ar por ações judiciais movidas por algum ofendido.
Bons ou maus tempos? Não sei. Mas era divertido, com certeza. O mundo mudou e os costumes também. Menino que usava óculos era cegueta, criança era fedelha, magro era vara de tirar pinha, gordo era baleia, branco era branquela, louro era sarará ou barata descascada, preto era neguinho. Se revelasse alguma deficiência cognitiva era burro, jumento, tapado – hoje é sem noção. A moça correta era santa do pau oco, rapaz direito era metido a sebo. Ou otário. E a vida corria mansa e feliz.

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