por NILO EMERENCIANO // arquiteto e escritor

Nos idos dos anos 1960 a gente chamava “fossa” o que hoje é sofrência. Estar na fossa, entrar em fossa.

Tirinha: Rê Bordosa – Angeli
A personagem Rê Bordosa, de Angeli, vivia em fossa dentro de uma banheira e bebendo todas. Era meio que chic vez por outra se afirmar na fossa. O país vai mal? Estamos na fossa. Acabava um namoro e a moça reclamava: tô na fossa. O remédio era arranjar outro, afinal, como biscoito, vai um, vem dezoito.
Psicólogo era um luxo reservado às sofrências dos ricos, coisa das dondocas de Ipanema. Aos pobres restavam as radiolas de ficha, as cartomantes, as mães de Santo, o horóscopo ou o confessionário, torturando os pobres padres que não sabiam lidar com essas coisas de traições e chifres.
Minha avó, dona Assis, não tinha um pingo de paciência com essas conversas lacrimejantes: “– Falta de tutano de quem não tem mais o que fazer!”. Pra ela, nada havia que umas dez mangas espadas maduras não resolvessem. Apontava a bacia cheia de mangas e me dizia: “- Pia, meu neto. Posso reclamar da vida?”. O “pia” aí era como ela abreviava o verbo espiar. Depois acendia o cachimbo e me contava histórias. Acho que aprendi com ela a não me lastimar de nada, muito menos amores passageiros.
Os homens iam curar a fossa nos bares ou nos ombros dos amigos, de preferência ouvindo canções que falavam de amores fracassados. A cantora Maysa era a rainha da roedeira. “Ouça vá viver/a sua vida com outro bem/hoje já cansei/de pra você não ser ninguém.” Lupicínio Rodrigues, o Rei. “Eu gostei tanto quando me contaram/que te encontraram chorando e bebendo na mesa de um bar.” Depois surgiram variações: estar down, para baixo, deprê. Marília Mendonça tornou-se famosa por cantar sofrências. Já foi dor de corno, de cotovelo. Que o digam Waldick Soriano, Lindomar Castilho, Cláudia Barroso – “A vida é mesmo assim/ alguém tem que perder/pra outro entrar no jogo”. Orlando Dias também foi um expoente do brega-romântico, cantando “Sou louco por ti / eu sofro por ti / te amo em segredo (…) Tenho ciúme do sol, do luar, do mar / tenho ciúme de tudo” — e concluía sem medo de ser (in)feliz:  “tenho ciúme até da roupa que tu vestes”. Tá bom, ou querem sofrência maior do que essa? Sem problemas, há para todos os gostos, inclusive uma canção gravada por José Ribeiro chamada Porteiro Suba e Diga. A letra narra as desventuras de um homem na porta de um cabaré, mandando pelo porteiro recados à ingrata que se diverte lá dentro e concluindo, machão: “diga pra ela/que a espero tremendo/sofrendo  e gemendo/morrendo de amor”. Acreditem, a música existe e foi grande sucesso na época.
Nada que se compare aos tangos de Gardel, incomparáveis na temática deprê. Mano a mano é um primor do amor traído e ressentido: “Y mañana cuando seas descolado mueble viejo/ Y no tengas esperanzas en el pobre corazón”. Comparar o antigo amor com um móvel velho é digno das maiores dores de corno. Nelson Gonçalves gravou um LP chamado “O Tango na Voz de Nelson Gonçalves”. Ouvi à exaustão quando menino. Nosso vizinho era dono das radiolas de ficha dos bares da Ribeira e a oficina era nos fundos da casa. O seu funcionário devia ser fã, já que a tarde inteira só tocava Nelson. Aí rolava Hoje Quem Paga Sou Eu, A Média Luz, Palhaço, Vermelho 27 e outros belos e tristes tangos. Mas tenho um preferido, claro, que a meu ver merece o grammy do brega: um tango chamado Esta Noite Eu Me Embriago. Avaliem vocês mesmos. O cara encontra na madrugada das ruas “triste, sozinha, desprezada” saindo de um cabaré, a sua amada de tempos melhores. O estado da moça é lastimável: “Magra, vestida sem aprumo/A exibir sem rumo/Sua nudez/Parecia um quadro sem valor/Mostrando sem pudor/Seu corpo sem calor”. Aí reclama lacrimoso: “Nunca sonhei que a veria/Perdida abandonada/como hoje a encontrei”. E conclui, numa fossa (ou sofrência) sem tamanho: “Este encontro me fez tanto mal/Que só por me lembrar/Me sinto envenenar/Esta noite eu me embriago sim/Eu bebo até o fim/Pra não pensar”. Era assim, quadro sem valor, móvel velho, que as antigas canções descreviam as mulheres. E Lupicínio achava pouco e resolvia “vingança, vingança aos santos clamar”. Devia ter algum problema, com certeza, o velho Lupe. 
Então? Ainda acham que sofrência é novidade? Recomendo uma sessão nostálgica com uma radiola e velhos vinis, um lenço, uma cachacinha se você gosta e, querido amigo, se prepare para uma boa e relaxante tarde de “roedeiras”.

 

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