Movimento feminista e a divisão em ondas (I)

 

por ALUIZIA FREIRE // Professora e historiadora

Fotografia: Rogério Marques

No presente artigo fazemos uma análise da historicidade do movimento feminista no Brasil e suas divisões em ondas a partir do nosso lugar de fala enquanto mulher, historiadora, pesquisadora, militante feminista nos movimentos sociais, e suas relevâncias para a construção e análise de uma nova história.

É importante enfatizarmos que durante muito tempo a história das mulheres era escrita pelas lentes do olhar masculino. Fomos invisibilizadas pela historiografia, a História contada era dos homens, que predominavam e predominam ainda no cenário político partidário. O poder no âmbito do espaço político nos faz refletir como as mulheres foram se inserindo dentro desse contexto predominantemente masculino.
Durante muito tempo, as mulheres estiveram restritas ao âmbito do privado, numa sociedade em que o poder masculino predominava. À medida que as mulheres começam a conquistar novos espaços de poder, elas saem do mundo restritamente privado para o público. Temos a compreensão que a história do movimento feminista nos faz refletir, como conseguimos disputar espaços antes dominados pelo sexo masculino nos lugares de decisão política, e como a história de luta pelo sufrágio feminino, os movimentos feministas e a divisão em ondas, nos levam a entender as mudanças no modo de viver das mulheres, a importância e seu crescimento na política, no mercado de trabalho, o modo operandis de viver, a partir da saída delas do espaço da casa para as ruas.
No Brasil, o movimento pela emancipação das mulheres teve início com o sufragismo – movimento organizado que tinha como objetivo a conquista do direito ao voto feminino e a luta por outros direitos civis democráticos (SOUZA-LOBO, 1991). De maneira geral, o movimento pela emancipação das mulheres passou por quatro grandes ondas. A primeira foi no século XIX e início do século XX, com o movimento sufragista e a luta por direitos democráticos, como o divórcio e o direito de receber uma educação completa, nos primórdios da revolução burguesa. Assim como Pedro (2011), Toledo (2001) dentre outras feministas na primeira onda, as mulheres reivindicavam direitos políticos, sociais e econômicos. A segunda onda ocorreu no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, e nesse período os movimentos feministas visavam, basicamente, à liberação sexual. Elas passaram a exigir direito ao corpo, ao prazer, e lutavam contra o patriarcado. A terceira onda, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, tinha caráter sobretudo sindical e foi protagonizada principalmente pela mulher trabalhadora latino-americana (TOLEDO, 2001).
Todas essas conquistas ocorreram em decorrência da luta das mulheres em todos os espaços de poder, isto é, sair da invisibilidade em que foram submetidas durante séculos. Em relação à terceira e quarta onda, usamos como referências teóricas autoras que discutem os movimentos feministas, como Virginia Vargas (2008), Marlise Matos, (2014) e Velasquez, (2014). Essas autoras enfatizam as décadas de 1990 e 2000, portanto, nesse período os movimentos feministas deram espaços para que novos personagens da história entrassem em cena, como enfatiza Pedro (2010)[1]. Vamos ter nesse momento um movimento feminista com mulheres que fazem parte da nova história, dentre esses novos atores estão incluídas mulheres negras, mulheres do campo, mulheres transexuais e transgêneros, trazendo à tona os diferentes marcadores sociais como identidade de gênero, sexualidade, classes sociais, etnias, cultura, raça, religião, entre outras.
No Brasil, a primeira onda do movimento feminista acompanha a tendência europeia de exigir direitos políticos e trabalhistas nas primeiras décadas do século XX. Lideradas por Bertha Lutz, bióloga e destacada cientista, as suffragettes[2] brasileiras conquistaram o direito ao voto em 1932. Enfatizamos a importância da luta pelo voto feminino a partir de Bertha Lutz e de outras mulheres em defesa do sufrágio feminino.
Nesse mesmo contexto, mulheres operárias de ideologia anarquista organizaram-se para ampliar os direitos das trabalhadoras de indústrias têxteis brasileiras. Esse feminismo inicial presente na Europa, Estados Unidos e Brasil arrefeceu entre os anos 1930 e 1960 (PINTO, 2010, p. 16).
Percebemos que nesse período, mesmo com essa luta, não se observou avanço significativo quanto à representatividade política das mulheres, porém tivemos conquistas que se refletem até os dias atuais, como o uso da pílula anticoncepcional e o avanço da medicina, reconhecendo o direito reivindicado pelas mulheres de decidirem sobre seu próprio corpo. Temos a consciência que o aborto é consequência das condições materiais de existência. Nem todas as mulheres podem fazer um aborto seguro. Como exemplo, citamos as mulheres em condições financeiras melhores, que têm dinheiro para fazer o aborto numa clínica com todos os cuidados e uma estrutura adequada. Enquanto as mulheres pobres vão para as clínicas clandestinas sem nenhuma segurança, com risco de morte. Além disso, o aborto é tratado como problema estritamente de mulheres.
Considerando que as autoras citadas não tinham muitas discordâncias em relação à divisão em ondas, para definir como se deu esse movimento. Pedro (2011) vai além ao definir com categorias de análise para entender a importância desse movimento para a emancipação das mulheres. Assim, nos anos 1970 a categoria analisada seria de “mulher” pensada como a que identificaria a unidade, a irmandade, e ligada ao feminismo radical. Os anos 1980 se identificavam com a emergência da categoria “mulheres”, resultado da crítica às feministas negras e do Terceiro Mundo. O feminismo dos anos 1990 seria o da categoria “relações de gênero”, resultado da virada linguística e, portanto, ligada ao pós-estruturalismo (PEDRO, 2011).
Segundo Toledo (2001), os anos 1980, com as profundas mudanças ocorridas no mundo do trabalho, e os anos 1990, com as transformações advindas das Revoluções nos países do leste europeu, trouxeram mais perguntas do que respostas, no que se refere à situação da mulher.
Ainda sobre o sufrágio feminino, Pinto (2003, p.15) discorre que, já no século XIX, apareceram mulheres que lutaram pelo direito ao voto, todavia de forma individual, solicitando seu alistamento como eleitoras e candidatas. Cita o exemplo em 1881, da dentista gaúcha Isabel de Sousa Matos que requereu, com base em uma lei que facultava o voto aos portadores de títulos científicos, o direito a se alistar.
Desse modo, podemos inferir que as reivindicações das mulheres no Brasil não se diferenciavam da luta das mulheres na Europa e nos Estados Unidos, países considerados como capitalistas desenvolvidos. É importante fazer essa aproximação. Temos nossas singularidades, principalmente quando enfrentamos a ditadura militar e tivemos de reivindicar questões específicas, como o direito à anistia e a volta dos direitos políticos. Podemos observar isso quando analisamos a história da participação das mulheres brasileiras no parlamento, sobretudo a partir da participação de Bertha Lutz, uma mulher branca, da elite brasileira, que, após estudar na França, na Universidade de Sorbonne, retorna ao Brasil em 1918, inspirada nas feministas francesas, mas também nas estadunidenses.
Enquanto a análise de Celi Pinto (2003, p. 37) aponta para a essencialidade do direito ao voto e cita Maria Lacerda de Moura[3], que compartilhava ideias anarquistas, percebia o voto como algo negativo, pois, para essa autora, nem todas as mulheres conseguiram galgar um cargo público, e é possivelmente uma das mais importantes feministas do início do século XX. As mulheres viam as dificuldades de articular uma candidatura, pois os serviços domésticos, os cuidados com filhos e maridos consumiam seu tempo, muitas se sentiam incapazes de galgar um cargo público.
Ainda de acordo com Pinto (2003, p. 38), para Maria Lacerda o capitalismo era responsável pela opressão das mulheres, ou seja, o sistema capitalista sempre é um dos males da sociedade de classes. Para Pinto, as anarquistas se juntaram às feministas “malcriadas” e se expressavam nas passeatas, nos enfrentamentos na justiça e nas atividades de mulheres livre pensadoras, trazendo nas discussões o mundo do trabalho. Compreendemos como as reivindicações de Maria Lacerda foram de grandes contribuições para os movimentos feministas, indo além das discussões do direito ao voto.
Para Souza-Lobo, a luta contra a exploração da força de trabalho feminina – os baixos salários e a opressão sexista exercida pelos patrões – foi a principal reivindicação do movimento operário de orientação anarquista (SOUZA-LOBO, 1991, p. 214). Nesse sentido, consideramos que esse movimento de ação direta, pela relação existente entre o movimento operário anarquista e o sindicalismo revolucionário estavam presentes no movimento europeu, principalmente na Itália.
Ainda sobre o feminismo anarquista, Ilze Zirbel pontuou algumas temáticas para acrescentar nas discussões sobre a pauta das mulheres feministas, reivindicada por Maria Lacerda, como o acesso ao trabalho, à educação, à questão política e às relações sexuais (ZIRBEL, 2020). Portanto, nesse período, no âmbito de determinados setores da sociedade, as mulheres eram vistas como seres incapazes de galgar um cargo público e competir com o sexo masculino na política partidária, por exemplo.

 


[1] PEDRO, Joana Maria; WOLFF, Cristina Scheibe (orgs.). Gênero e feminismo do Cone Sul, 2010.
[2] Termo usado para definir as sufragistas, militantes britânicas do início do século XX autodenominadas “suffragettes”, traduzido no Brasil para sufragistas, movimento pela emancipação dos direitos das mulheres. Cf. Cyntia Semiramis Vianna, (2017, p. 81).
[3] Maria Lacerda de Moura, nascida em Minas Gerais, em 1887 (PINTO, Celi, 2003, p. 37).
REFERÊNCIAS
ALVAREZ, Sonia E. A Engajamentos ambivalentes, efeitos paradoxais: movimentos feminista e de mulheres na América Latina e/em/contra o desenvolvimento. Feminismos, n. 4, 2014b.
COELHO, Maria Thereza Ávila Dantas; SAMPAIO, Liliane Lopes Pedral. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/15770/1/A%20TRANSEXUALIDADE%20NA%20ATUALIDADE.pdf Acesso em: 01 out.2021.
FREIRE, Aluizia do Nascimento. A inserção das mulheres na Câmara Municipal de Natal (1988-2004). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2008.
hooks, Bell. O feminismo é para todo mundo: Políticas arrebatadoras. 10. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.
MATOS, Marlise. A Quarta onda feminista e o Campo crítico-emancipatório das diferenças no Brasil: entre a destradicionalização social e o neoconservadorismo político. 38º Encontro anual da ANPOCS/UFMG, 2014.
PEDRO, Joana Maria. As mulheres e a separação das esferas. Revistas diálogos, DHI/UEM, v. 4, n. 4, p. 33-39, 2000.
PEDRO, Joana Maria; WOLFF, Cristina Scheibe (orgs.). Gênero e feminismo do Cone Sul. Ilha de Santa Catarina. Ed. Mulheres, 2010.
PEDRO, Joana Maria. Relações de gênero como categoria transversal na historiografia contemporânea. Revista Topoi, v. 12 n. 22, p. 270-283, jan. 2011.
PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003.
_______________________. Feminismo, História e Poder. Rev Social e Política, Curitiba, vol.18 nº 36 Disponivel em: https://revistas.ufpr.br/rsp/article/view/31624. Acesso: 20 jun. 2020.
SOUZA-LOBO, Elisabeth. A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e resistência. São Paulo: Brasiliense/Secretaria Municipal de Cultura-SP, 1991.
TOLEDO, Cecília. Mulheres: o gênero nos une, a classe nos divide. São Paulo: Xamã, 2001.
ZIRBEL, Ilza. Introdução ao feminismo: Rede Brasileira de Mulheres Filósofas. Disponível em: https://arribacao.com.br/2020/04/10/introducao-ao-feminismo-rede-brasileira-de-mulheres-filosofas-anuncia-curso-online-gratuito/UFSC. Acesso: 15 abr. 2020.
VARGAS, Virginia. Feminismos en América Latina: Su aporte a la política y a la democracia. Lima: Universidad Nacional Mayor de San Marcos, Colección Transformación Global, 2008.

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