Alaecio e Célia moram há 40 anos na comunidade de Enxu Queimado. Fotografia: Samuel Felipe/Coletivo Foque

“Sou nascida em Parazinho, mas faz 40 anos que eu moro aqui, não pretendo deixar esse lugar. Se a gente sair daqui vai viver como? A gente não pode deixar isso aqui por nada. Ele nasceu aqui e é aqui que temos que morrer”, conclui Francisca Célia apontando o esposo que fez aniversário nesta segunda-feira, 7 de setembro. “Completei hoje 54 anos, nasci e me criei aqui”, revela Alaecio que diz trabalhar na agricultura.

“E pescamos”, emenda Célia. “Porque quando falta pra gente se alimentar, a gente corre ali pra vargem e aqui mesmo na praia coloca uma rede e pega peixe. Ontem mesmo faltou a nossa mistura, tem feijão, tem arroz, e a gente foi e pegamos a tainha, aí almoçamos, jantamos e tomamos café agora de manhã. É daqui que a gente tira o nosso sustento. Se faltar a farinha, a gente pesca, pega o peixe e troca pela farinha”, desabafa.
Fotografia: Samuel Felipe/Coletivo Foque
Ela questiona por que a empresa “não quer mexer com peixe grande, só quer mexer com peixe pequeno e analfabeto como nós”. Ao mostrar a barraca, Célia declara que “as únicas pousadas que tem aqui são essas de palha, que são as nossas de resistência”.
São 554 famílias vivendo na comunidade tradicionalmente pesqueira, que começou a ser ocupada quando pescadores que usavam o caminho para ir pescar começaram a trazer suas famílias para morar nesse lugar ainda inabitável no início do século XX. “Para isso, foi necessário exterminar os enxames de abelhas queimando-os. E a partir de então o lugarejo passou a se chamar Enxu Queimado”, essa é a história contada pelos moradores mais antigos e descrita por Fiama Oliveira de Araújo em seu Trabalho de Conclusão de Curso: Um estudo de caso no distrito de Enxu Queimado, Pedra Grande/RN.
Hoje, a centenária colônia de pescadores vive entre ameaça de despejo e a luta de resistência pelo direito à terra ocupada há cerca de um século. Mais de duas mil pessoas vivem na comunidade, distante 145 km da capital do Rio Grande do Norte.
No dia 21 de agosto de 2020, a ordem em letras oficiais veio acompanhada de Ofício anexo “solicitando o envio de reforço policial como forma de permitir o cumprimento da Decisão judicial proferida no Processo 0800205-36.2020.8.20.5151”, isto é, a reintegração de posse contra moradores de Enxu Queimado, no município de Pedra Grande, reivindicada pela empresa Teixeira Onze Incorporações Ltda.
Diante da decisão do juiz João Henrique Bressan de Souza, da Vara Única de São Bento do Norte, o advogado Gustavo Freire Barbosa entrou com um recurso contra a reintegração de posse, que teve suspensão temporária concedida pelo desembargador Vivaldo Pinheiro, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJRN), em vista da inexistência de prova da posse anterior pela proprietária.
O advogado Gustavo Freire esclarece que “a Teixeira Onze entrou com uma ação de reintegração de posse na Justiça sem comprovar essa posse, diferente das centenas de famílias que moram há muitos anos na comunidade. Para ter uma posse reintegrada é preciso ter uma posse que perdeu”. Ele explica que a empresa apresentou só a documentação referente à propriedade e isso não prova posse. “Não se prova posse com escritura pública, a empresa não tem como ser reintegrada a uma posse se ela não provou. Foi com base nesse fundamento que nós apresentamos que o Desembargador julgou procedente o nosso recurso, suspendendo a decisão da Vara de São Bento do Norte”.
No recurso em defesa dos moradores de Enxu Queimado, ele observa que ainda não há decisão definitiva sobre a propriedade, “no entanto, há uma pressão contínua e permanente para que os moradores abram mão de suas residências (posses) na região em favor da Teixeira Onze, conforme vídeo de autoria da empresa, direcionado explicitamente aos moradores de Enxu Queimado, exortando-os a ir ao cartório local para regularizar suas posses e passar a ter a escritura pública de suas casas”.
Reforça ainda que “não há provas acerca da posse e tampouco da propriedade por parte da Teixeira Onze no que diz respeito à área reivindicada. Tampouco há sentido em dizer que possui a ‘propriedade sobre toda a região’, e muito menos de que está disposto a cedê-las aos moradores que as regularizarem. É contraditório, a propósito, se dizer proprietário de imóveis ao mesmo tempo em que estimula moradores a regularizar suas posses para que possam vendê-las a um preço maior para a Teixeira Onze, que já se arroga na condição de dona da área toda”.
O engenheiro Maurício Soares, que está fazendo o levantamento junto aos moradores, afirma que “as casas estão dentro de uma comunidade que já tem ruas calçadas, energia elétrica, água encanada, existe serviços do governo do Estado e da prefeitura. “Como é que agora aparece uma pessoa com uma escritura dizendo que é dono de uma área que tem posto de saúde construído pela prefeitura há 20 anos e pessoas que moram no lugar desde a década de 1970?”
O advogado Rivaldo Dantas explica que usucapião nada mais é do que o instrumento pelo qual o juiz vai declarar que aquele imóvel realmente pertence àquela pessoa pelo tempo já de posse. “O tempo que cada morador reside ali, muitos moram no lugar há mais de 20 anos, a posse já está mais do que provada que ele é o verdadeiro proprietário. Então, vamos entrar com ações individuais pleiteando ao juiz que declare a posse legítima do terreno para que possa regularizar”. Para isso está sendo feito o levantamento e cadastramento dos moradores.
Segundo Rivaldo, os moradores precisam se conscientizar que são donos do imóvel. “A posse é legal, como eles são os legítimos proprietários do imóvel não tem que se venderem ou comprar informação de terceiros que chegam no sentido de querer aferir vantagem sobre as pessoas sofridas da comunidade”.
O secretário Alexandre Lima, da Secretaria do Desenvolvimento Rural e da Agricultura Familiar (Sedraf-RN), informa que o Comitê Estadual de Resolução de Conflitos Fundiários reuniu-se para tratar sobre esse ponto e em seguida participou de uma reunião na comunidade. Ele adiantou que a Sedraf também está agendando uma reunião com a empresa Teixeira Onze.
“No dia 2 deste mês foi uma equipe da secretaria começar a fazer a avaliação da documentação, das escrituras do imóvel no cartório, que a gente chama tecnicamente de cadeia dominial. O objetivo é avaliar o histórico da propriedade em questão ao longo do tempo. Nós vamos até a origem da propriedade para determinar de onde foi gerada e o desdobramento dela”, diz.
Alexandre explica que o Comitê tem o objetivo de fazer a mediação administrativa. “Enviamos um ofício ao juiz comunicando que estávamos ouvindo as partes e que esse estudo técnico que a secretaria está fazendo como órgão de terra do Estado daria condição de avaliar a validade da documentação apresentada do ponto de vista legal”.
Ele lembra que o município de Pedra Grande passou por um processo de regularização fundiária, que é o cadastro e a medição das propriedades. “Eu não sei porque motivo se parou, era para ter continuado, o fato é que estamos retomando”. A Sedraf sugeriu para a prefeitura fazer a parte de topografia porque daria mais agilidade no processo de georreferenciamento da área para saber os limites do imóvel com base na documentação analisada. “Mediante a análise da cadeia dominial é que o Estado vai se pronunciar e tomar as medidas cabíveis”.
O coletivo Foque tentou contato com a Teixeira Onze, mas não obteve resposta até a conclusão desta matéria.
Fotografia: Samuel Felipe/Coletivo Foque
“É difícil defender só com palavras a vida”, disse o poeta João Cabral de Melo Neto. Mas, se preciso for, hectares e mais hectares de palavras haverão de defender a dignidade da comunidade e dos seus ilustres moradores. Como bem diz a estrofe da canção Oração Latina:
“E diga sim
A quem nos quer abraçar,
Mas se for pra enganar
Diga não”

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