Um pé na rua, outro na história: a cidade como espaço de memória.

Fotografia: Rogério Marques

Num sábado pingando de suor (13/4) o centro da capital potiguar foi relembrado como espaço de memória, de debate público, de escuta e de fala. Assim, o historiador Luciano Capistrano levou para as ruas mais uma história que os livros didáticos não contam.

Atenta às narrativas e aos “pecados poéticos” do professor, a turma acompanhou e participou da aula sobre os 60 anos do golpe civil-militar. Uma atividade repleta de fatos históricos que naquele ano de 1964 seria taxada de subversiva e desobediência à ordem ditatorial. “Isso aqui é o ar que eu respiro”, desembucha Luciano. E emenda, “Não cabem neutralidade nesses espaços”.

Não por acaso, a caminhada histórica iniciou na Praça da Mães, localizada ao lado da antiga sede da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). “Quando eu passo aqui pela Praça das Mães, eu sempre me lembro como são doces as mães. E eu fico pensando como essas mães que perderam seus filhos durante o período da ditadura militar, como elas sofreram, a mãe do professor Silton, a mãe de Anatália, a mãe de Emmanuel Bezerra”.

De vez em quando, ao parar em algum lugar de memória, o historiador puxa um livro da sua mochila e aproveita para indicar as leituras que guiaram essa aula de história nas ruas. Em frente ao prédio da OAB, faz uma homenagem às advogadas Mércia Albuquerque e Mailde Pinto. Para ele, duas mulheres em que suas trajetórias de vida se entrelaçam com a história do Brasil. “Mércia Albuquerque é uma dessas mulheres que passam nesse plano terreno e que a gente fica assim, poxa, a humanidade valeu a pena porque produziu Mércia”.

Recém-formada, Mércia vê aquela cena de Gregório Bezerra sendo arrastado pelas ruas de Recife e, a partir dali ela disse: ´não vou ganhar dinheiro com advocacia, vou trabalhar em defesa dessas pessoas que foram perseguidas, torturadas, que são arrastadas nas ruas, humilhadas´. Mércia se tornou a advogada que mais defendeu presos e perseguidos políticos no Nordeste.

Em seguida, o professor lê um trecho do livro “1964. Aconteceu em abril, escrito por Mailde Pinto Galvão, que na época do golpe militar estava à frente da Diretoria de Documentação e Cultura da Secretaria de Educação, Cultura e Saúde, durante o governo Djalma Maranhã – “A cidade com aproximadamente duzentos mil habitantes, assistiu indefesa à ocupação militar por tropas do Exército, à perseguição, prisão, tortura, exílio e morte de filhos que a amavam”.

Entre suas inquietações, ao atravessar ruas e praças, o historiador andarilho retira da mochila o seu livro “1964: para não esquecer”. Escolhe uns versos e declama a plenos pulmões.

1964
Sangra-se liberdades
Memórias
Memórias das noites sombrias
Sob o manto do medo
Tortura-se
Prende-se
Exila-se
Silencia-se
Desaparecidos políticos
Memórias
Memórias das noites sombrias
Sob o manto do medo
Censura-se o pensar
Amordaça-se a fala
Democracia interrompida

O professor traduz o cenário urbano em diversas épocas de nossa história. “E assim o espaço público se transforma numa sala de aula perfeita para tecermos os diversos temas que compõem a formação da sociedade brasileira”, diz.

A cada parada, ruas e praças relembram fatos e vítimas do golpe civil-militar de 1964, como a antiga galeria de arte instalada na praça André de Albuquerque pelo prefeito Djalma Maranhão, que foi preso e cassado pela repressão que tomou conta do país. Uma aula que traz à tona as dores provocadas pela ditadura. Uma história que precisa ser contada para que nunca mais a liberdade seja aprisionada nem sangrada nem a voz silenciada nem amordaçada nem os direitos humanos perseguidos nem torturados nem exilados nem mortos nem desaparecidos.

A cidade com suas memórias, e a resistência de mulheres e homens que lutaram por justiça e liberdade, precisa de mais aulas de história nas ruas como a lição que o professor Luciano Capistrano nos deu neste 13 de abril de 2024 sobre um dos períodos mais dolorosos da sociedade brasileira.

Um país que sentencia seu povo ao analfabetismo político necessita mesmo ter suas ruas ocupadas pelas vozes de historiadores comprometidos com a verdade, a resistência e a memória de gerações que lutaram em defesa dos direitos humanos tão pisoteados pela ditadura.

Ao final da caminhada histórica pelas ruas de Natal, na calçada do Sebo Vermelho foi feito o sorteio de alguns livros entre participantes dessa inesquecível aula de consciência política.

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